quinta-feira, 31 de março de 2011

Angra dos Reis

Não me importo em atribuir-lhe o peso da culpa, queria poder te expulsar, mas estou diretamente ligado a você e é só questão de tempo para desaparecermos. Agora é o que temos: somente um ao outro, você fez questão que fosse assim. Não pensou que poderíamos precisar de alguém para dar os remédios, ler poesia, contar uma história? Você nos condenou à solidão e agora esperamos as estrelas caírem, sinto saudade de quando éramos apenas um, ou éramos apenas você, meu lado são, alegre e desmedido. Irresponsável, contaminável, foi isso que você foi, queria abraçar o mundo? Pois é, agora fazemos parte desse caráter pandêmico, de certa forma você conseguiu. Seu coração perfeito ainda bate, bate no compasso de uma marcha fúnebre, bate à toa, e isso dói.
Tem dias em que tudo está em paz, e agora é só o calor de nossa febre que queima as infecções plantadas, que queima tudo ao redor, que queima nossa esperança. Tenho medo, olho pro céu e precipito nosso fim, a culpa é toda sua e nunca foi...
Pensou que não haveria perigo brincar nessa usina nuclear, onde o sexo, as drogas e até mesmo sua coragem eram radioatividade pura? Sua imprudência agora mutila todos os descendentes que nunca chegaremos a ter, deixa pra lá, a angra que é dos reis.
Vai ver que não é nada disso, vai ver que eu já nem sei quem sou, noto você partindo e grito a um monstro invisível, me diz, me diz pra onde eu devo fugir. Tarde demais, pode rir agora que estou sozinho e mesmo contrariando os meus desejos, eu sei que é você quem vai voltar, que é você quem vai roubar-me a vida.

Inspirado na música de Renato Russo, Renato Rocha e Marcelo Bonfá.

sexta-feira, 25 de março de 2011

Déjà-vu

          Estava num tédio danado, desses de domingo. Nenhuma verdade a machucaria. Estava alheia àquele contexto sempre tão repetido. Era um tédio danado, mas que já não surpreendia mais. No alto de suas duas dezenas de idade, percebia que já deveria ter tomado algum rumo na vida, como diziam simploriamente, ignorando as variáveis. Viu-se até mesmo uma adolescente crônica, que por certo jamais cresceria e seria decidida, autoconfiante. Todo aquele tédio que até pouco tempo era morto nas suas desandanças, em noites sem fim, noites alucinadas, acumulava-se na rotina de adulta pela qual se encaminhava agora. Mantinha-se indiferente e distante de tudo, como se já tivesse visto o bastante e sentisse prematuramente as dores da idade, já esperadas e toleráveis.
          Fazia algum tempo ela já não se interessava por algo novo, ou se distraía com o que já pressentia conhecer. Sentia-se prostrada num quarto fechado, sem aberturas de portas ou janelas, sem contato com nenhum outro humano em potencial. Era uma visão que lhe surgia, sem hora exata nem lugar, e que a detinha mesmo em meio a tanto flerte, mesmo num lugar de som muito alto e luzes descontroladas, mesmo ao lado de alguém que lhe oferecesse alguma tentativa de distensão. Bastavam apenas alguns minutos de silêncio pra que ela saísse do momento e logo se pegasse de novo sobre aquela cama, dentro daquele quarto lacrado, deitada, tranquila, consumindo-se em preguiça. Muitos se afastaram por seu estar-não-estar, alguns ainda insistiam e outros nem desconfiavam de sua apatia. Talvez fosse apenas charme. Ela se consumia em preguiça pra se desperdiçar naqueles jogos sociais e já não confiava em nada nem mais ninguém. Estava de cara blasé com a vida e esperaria o tempo que fosse pra que um dos lados deixasse um indício de cansaço denunciar a rendição do embate. Estava encarando o inimigo, ou apenas hesitando, medrosa, como aqueles que esperam o outro se mexer pra tomar uma decisão. O difícil era identificar quem ou o quê era o inimigo.
          Da janela do quarto real, ou pelo menos tateável, o mundo estendia-se irregular por sobre o teto das casas e no vertical dos prédios, numa confusão de fios e antenas e pipas presas. O mundo se desenrolava, em tons de cinza, fotografias em preto e branco, silencioso apesar de tantos ruídos. Estava num tédio danado, num dia desses de domingo e apesar do céu tão nublado, aventurou-se em se misturar ao convívio daqueles anônimos que se perdiam pelas ruas, na direção contrária de tentar achar. Eram alguns imundos pelas calçadas cujo sofrimento já não comovia mais que envergonhava quem passasse alinhado. Eram sonhos de consumo nas vitrines, objetos fúteis, livros de auto-ajuda, que não a atraíam. Sonhos predefinidos que se não realizasse e ficasse só na vontade não iriam fazer doer, pois quando se está tanto consigo mesmo, aprende-se a controlar a dor, espera-se que ela passe, sem o subterfúgio de maquinar um discurso de vítima que possa comover alguém.
          Fazia algum tempo não chovia e estava quente. Perdeu a noção do tempo, medida besta. Paranoica, pegou-se várias vezes com aquela estranha sensação de já ter passado por tudo aquilo, alguma vez, quem sabe?, numa vida passada. Mas eram apenas aquelas mesmas ruas que se repetiam abaixo dos seus pés, por onde já passara tantas vezes. Enquanto todos corriam depressa pra se proteger e outros tantos abriam seus guarda-chuvas, ela continuava indiferente, deixando-se molhar, com seu mesmo passo regular e sentindo cada pingo frio, sem medo de parecer uma doida varrida, já que estava tão à parte daquele contexto de política e protocolos. Ela não tinha pressa mesmo.

Inspirado na música de Peu Gomes e Pitty.

quarta-feira, 23 de março de 2011

Por que não eu?

           E mais uma vez, ela cai no sofá. Aquele velho sofá, por que não rasgado, sujo e maltratado? Ela cansou de embriagar-se lentamente em pequenas doses de vinho, tomado na delicada taça. Essa taça desse conjunto com que eu a presenteei hoje, seu aniversário. Era pra ser um jantar encomendado, só pra nós dois. Um bom vinho, um belo conjunto de taças, um jantar e um cartão. Ocasião especial. Hoje eu ia dizer aquelas coisas, que penso há tanto tempo.
            Tá, tudo bem: Um ano e três meses, exatamente. Desde o primeiro dia que eu visitei esse apartamento, e aqui já dormi, depois de um porre em comum, eu já sabia. Era ela, é ela. A doce menina do sorriso de canto, de olhos cor de mel.
             E eu não esqueci nenhuma palavra. Guardo tudo aqui, dentro de mim. A primeira vez que ela me chamou de amor. Nosso abraço, de quase trinta segundos, debaixo de chuva. Como sempre, os dois bêbados. Eu e ela, por que não? Sei de tudo que ela gosta, e do que não gosta também, me privando em tantas vezes para fazê-la feliz. Ah, é tudo que eu quero, e seria tão fácil.
            Tantos momentos, e sei relatar cada um. Tanta coisa que quero dizer, esperando a hora certa... E agora ela insiste em ter somente o travesseiro como companhia. Fui o primeiro a chegar, e certamente não irei embora. Não agora, não até ter a certeza que ela está bem, que acordará. E aí, tudo ficará igual. A coragem de me declarar já foi embora, no mesmo momento em que o vi.
            Estávamos terminando o jantar, ainda saboreando o vinho, e a campainha tocou. Fiquei surpreso, sim. Não sabia que ela esperava alguém. Como a tolice me foi traiçoeira. Era o aniversário dela, como pude pensar que seria o único a querer visitá-la? Como achei que a comemoração seria um simples jantar, encomendado só pra nós dois? Pensamento inútil, vã tolice dos apaixonados, mas... Por que não?
           Não, não mesmo. Ela esperava mais. Naquele momento, chegaram seis pessoas. Colegas do hospital, eu soube mais tarde. Bebidas na mão, presentes eu não pude ver. Não sabia que o jantar viraria uma festa, Não sabia que ele viria. Um rapaz loiro, com uma camisa de uma banda de rock qualquer. Tudo natural, pois ela nunca devia imaginar o que se passa nessa minha cabeça. Mas eu vi o jeito que ele olhava pra ela. E, quando tudo virou uma festa, para a qual não fui exatamente convidado, ele a levou pra sacada. E eu vi o beijo, ou o começo dele. A dor é ainda pior quando não é totalmente imaginada.
             E por que eu? Todos já foram embora, e agora somente eu, com um sentimento que é meu próprio algoz. Não posso culpá-la, ela não sabe. Como poderia saber? Penso que escondo tão bem. Mas a razão teima em resgatar um pouquinho de sanidade. Não, não, não. Ela não poderia saber. Por que não? Ela não me ama. Ela sabe, é isso. Ela sabe e faz aquilo que a convém. Sou um amigo, para quando não se tem nada pra depois.
             Canso-me de olhar, apenas olhar. Contemplar o belo corpo que nada sente. Não por mim. Eu, eu, eu. Sempre estou aqui, será que ela não vê? E agora que sei da verdade? E agora, que a razão finalmente me fez ver que isso não se trata de amor, mesmo que platônico. Essa obsessão que eu teimo em chamar de amor, é o que me cega. Se ela sabe que eu a amo, há tanto tempo, por que não me disse nada? Nem mesmo... um não!!! Por que? Por que não? Por que não consigo despertá-la pra mim? Eu, que sempre estive aqui...
             As perguntas me consomem enquanto fujo de minha pior dúvida. Fugir, ir embora, e quem sabe me libertar dessa prisão sem muros, ou talvez ficar, esperar. Eu tenho que falar, tentar, arriscar...
            Por que não?

Inspirado na música de Leoni, Paula Toller e Herbert Vianna

domingo, 20 de março de 2011

Flor da Pele

          Às vezes ele andava por aí, caminhando com seus próprios passos, sem saber muitas vezes por onde caminhava, ou até mesmo pra onde ia. Questionava-se, e questionava as coisas que o acompanhavam sem mesmo sair do lugar. Por que coisas sempre dependem de outras coisas pra serem alguma coisa?
         A criança, para ser feita, precisa de uma parte do homem e outra da mulher. Precisa também de coisas que a ensinarão a falar, a caminhar, aprender a "ser" alguém. Alguém precisa sempre de alguém, pra se tornar alguém que nem saberá quem. 
         Ele caminhava em um dia frio, e pensava que talvez o frio precisasse dele todo agasalhado pra ser realmente frio, bobagem. E frio só precisa de falta de calor. Será então que o frio não existia? Então é assim, pra que uma coisa exista, ela não precisa de outra, porque às vezes a falta de uma coisa faz com que outra exista.
          A solidão é a falta de alguém do seu lado, mas ele estava tão à flor da pele que não se concentrava nisso, apenas sentia a barriga gelada e a garganta seca, talvez pela falta de resposta pra tanta coisa.
          Ele lembrou do beijo da novela que o fez chorar sem ele saber porque, e percebeu que estava à flor da pele, à espera de um pássaro que viesse beijá-lo. Olhou para uma janela e diminuiu os passos. Havia alguém ali, com o olhar longe, pensou que poderia ser pra ele, isso o faria morrer.
          Seu desejo se confundia com a vontade de algo que ele desconhecia. Mas porque tinha que existir algo? Ele agora sabia para onde ia, queria entrar no velho barco. Estava cansado, não ao ponto de acreditar em alguém, apenas cansado.
         Chegou lá então, e foi logo lendo a placa de destino, não estava escrito nada, muito comum pra um barco sem porto, pra que teria que ter um destino se nem mesmo tinha vela.
          Ficou ali, sentindo o mesmo frio no rosto e se preservando de sentir mais alguma coisa. Olhou para baixo, o barco tão rápido movia a água de forma linda, ela precisava dele pra estar assim.
          Ele sentiu vontade de  conhecer aquilo mais a fundo, então ele se foi, quem sabe voltaria, ou talvez nunca mais.
          Seu suicídio precisava da água pra existir... coisas sempre precisam de coisas.

Inspirado na música de Zeca Baleiro.

domingo, 13 de março de 2011

O nosso amor a gente inventa

Difícil entender alguns sentimentos, é complicado aquilo que você escolhe para dar o nome de amor.  Quantas definições existem para cada ser? Seria mesmo o amor o querer bem cheio de resignações, visando tão somente a felicidade do outro?
Bem, começo a traçar uma linha de raciocínio e essa necessidade de nomear coisas e sentimentos me causa um vazio que também não encontro definição, ela sempre me foi um problema, acho que por isso eu prefiro as reticências e nunca tenha me sentido completo, as coisas perdem forma quando passam por aqui e a simplicidade de algo passa a ser a complexidade do que agora... Também me faltam as palavras.
Amor?
Não, talvez não, acredito que nunca tenha sido, embora eu o tenha sentido tão próximo, agora me ocorre que talvez eu nunca tenha amado.
Tantas formas diferentes de sentir, e a necessidade de catalogá-las, rotulá-las, e guardá-las num lugar seguro, tudo impressão... Não pode um sentimento ser tantos, deve haver algum que a gente reconheça com toda nossa capacidade sensitiva.
“O teu amor é uma mentira que a minha vaidade quer, e o meu poesia de cego você não pode ver.” E a ilusão vai se dissipando lentamente nesse estranho gosto de que a brincadeira acabou.
O amor é bom?
Alguns dizem que sim, já ouvi dizer que “é feio, tem cara de lixo”, e eu continuo sem opinião formada, não sei sequer o que sinto, não possuo certezas. Às vezes, noto uma vaga beleza, sinto raiva muito bem definida, inveja, medo, tristeza, sentimentos nem tão definidos assim, tenho tantas dúvidas e gostaria de ficar com a bela imagem de que o amor é bom.
“O nosso amor a gente inventa pra se distrair”, por isso talvez eu nunca tenha amado, ou tenha, afinal quando acaba a gente pensa que ele nunca existiu. Portanto, hoje eu fico com a definição que me convém... Amor: substantivo simples, comum e abstrato.

Inspirado na música de Cazuza. 

sexta-feira, 11 de março de 2011

O velho e o moço

Aquele velho sempre tão tranquilo naquela cadeira confortável, reclinável, e de um couro muito macio, estava lá, de frente pra vidraça que se anulava em verde, lá fora, no jardim, diante de seus olhos, murchos atrás de outros vidros. Era domingo. Dia de ressaca. Um domingo chuvoso de verão. Leonardo, de banho tomado, invejava o velho sentado. Ele que curtia aquela dor de cabeça, aquele estômago embrulhado, de álcool vomitado, ainda de roupão, esperava pelo sermão. Não viria de seu Leopoldo. Dele, o avô, não. Dele, não. Parecia viver num mundo à parte, junto da avó, que por aquelas dez da manhã, devia estar ainda na cama, tão bem de saúde. Dela também, ele esperava nada. Devia partir da mãe, da tia Judith, ou ainda de seu pai, sempre tão distante, mas que ressurgia naquelas ocasiões, a berrar ao telefone. Afinal, a pensão ainda era paga. Os irmãos, estes falariam um bocado, como ele, sempre tão mimados, exigiriam alguma satisfação da mãe, algum exemplo se punição. Leonardo não se dava muito com eles. Jéssica de dezesseis, Ronaldo, de dezoito, ele, já com seus vinte e um.  A dor de cabeça causada pela vodca, aumentava só de pensar em quando e quem começaria a fazer um balanço geral de sua vida até ali, de seus sempre tão repetitivos erros, mancadas, e do que pretendia fazer dali pra frente pra que mudasse seu certo destino de fracasso, sem nada nem ninguém. O domingo era dia propício a este risco. Era o dia seguinte à sexta e ao sábado, sempre tão embalados, que cobravam o preço no domingo, o dia depressivo da semana. Era esperar a comoção da tia, os insultos dos irmãos, a fala repetida da mãe e a arrogância do pai. No entanto, este domingo em especial, reservava um ingrediente a mais. Envolvia um certo carro, cujo seguro já havia sido contatado.
Seu Leopoldo, ouvindo ópera na cadeira, ópera de CD, muito bem agasalhado, muito bem reconfortado, exibia uma cara de constante gozo, enquanto folheava o jornal, deixado há pouco, por Tereza, a empregada, ao seu alcance. Leonardo ainda esperava, mas ninguém parecia estar em casa. O telefone não tocava. Ele recusara ainda há pouco um sanduíche que Tereza tinha lhe oferecido. Bebia nada além de água muito gelada, pra parar com aquela sede desmedida. Estava pálido, com olheiras pesadas, de roupão e nada disposto, os cabelos ainda molhados. Ninguém parecia estar em casa.
Agora, seu Leopoldo beliscava uns chocolates deixados por Tereza, ao seu alcance. Eram chocolates brancos e escuros, pareciam ser bombons. O neto, encolhido num sofá distante, às costas do avô, mantinha os olhos sobre ele. A boca com que o velho comia aqueles chocolates, despertara até mesmo nele, a vontade. Comia como não se come, degustava, apreciava a textura e o sabor de cada um, engolia-os aos poucos. Quando atentou pra este detalhe, o chocolate derretendo no calor molhado da boca do velho, o rapaz teve um indício de náusea. Por fim, passou tanto tempo e Leonardo acabou por acompanhar o avô devorar a vasilha toda. Quanto tempo havia passado desde então, quando ele passara a prestar atenção naquilo e se perdera em divagação? Nenhuma movimentação na casa. Realmente não estavam lá. Onde haveriam de estar? Era inevitável que ele se perguntasse, mas já não havia saco pra pensar. A chuva escorria pelas vidraças. E mesmo o céu, muito nublado, cinza, carregado, parecia ofuscar o verde do jardim. Jardim este, tão bem tratado, como seu Leopoldo e dona Guilhermina primaram desde sempre. Que houvesse a beleza. Eram dois virtuosos aposentados que não abriam mão de seus bons hábitos. Velhos poucos estes. E aquela ópera de CD persistia. Ninguém chegava, ninguém telefonava. Devia ser meio-dia.
A avó apenas lhe acenou de cara fechada, enquanto sentada à mesa, na sala de jantar, esperava pelo velho, pra que o almoço fosse servido. O avô com uma fisionomia simpática, convidou o jovem pra que se juntasse a eles, mas Leonardo apenas agradeceu. Seu Leopoldo ainda tinha apetite pra almoçar, mesmo depois de tantos bombons? O velho parecia não se ver muito cômodo com o auxílio de Juliana, a enfermeira, pra que se locomovesse até lá. Talvez se tratasse apenas do orgulho masculino, que mesmo nos mais idosos parecia persistir. Mas o velho sabia do incômodo e ela tinha razão quando vinha lhe dizer que era preciso, sim, de todo o cuidado. Quando se lembrava da preocupação de sua mulher, sua companheira de tão longa data, ele engolia sua vaidade e cumpria à risca todas as determinações, nem todas elas francamente, mas disfarçava muito bem, inclusive ser escorado por uma mulher pra andar. Não era nenhum jovem, já passara dos oitenta. Do lugar onde Leonardo estava, à lateral esquerda sua, tinha-se uma visão parcial da mesa, que permitia a ele acompanhar os dois velhos comendo. E ele quase sorriu quando antes de se sentar, o avô se dirigira à avó e lhe dera um beijo na boca, juntamente a um cordial e até galante bom-dia. E com que bocas saboreavam aquela refeição seguida de sobremesa e regada a vinho. Eram velhos privilegiados, talvez apenas dois desesperados à beira do fim, ou ainda apenas ele por ela, ela por ele, dois sábios, afinal. Não havia saco pra pensar naqueles dois velhos bons vivants, patéticos, decadentes, ricos à beira do comum fim de todos.
E já passara das catorze horas quando os velhos foram acompanhados aos seus quartos pra tirar uma pestana. Permaneceriam lá até dezessete horas e de banhos tomados iriam pra sala jogar caxeta e beber mais vinho. Leonardo permaneceria lá, naquele mesmo sofá, remoendo seu passado, em busca de algumas explicações. Odiava, claro, vaidoso, a idéia de que se auto-analisar fosse um exercício de autopiedade, subterfúgio de fracos. Ele curtia aquilo mesmo. Toda aquela droga, todo aquele sexo e todo aquele bom rock’n’roll. Um foda-se bem grande pra tudo. Ele gostava mesmo era do estrago, desde pequeno, como os carrinhos de brinquedo quebrados, logo na noite de natal. Até onde pudesse, levaria a vida naquele embalo, sem previsões do que pudesse vir a dar a errado, sem desistir daquilo que estava óbvio: daria errado. Porque ele ainda podia. Não queria saber de nada que exigisse muito compromisso. Ele queria abusar da liberdade que lhe era dada, somente isto. Era jovem e por isso ainda poderia reincidir várias e várias vezes. Era mesmo muito jovem. E a busca por respostas que indicassem alguma pista da razão de tanto desencontro e infortúnio era barrada pelo muro de tédio, e rebeldia sem causa, e pura inconseqüência juvenil, de um jovem burguesinho e suas loucas peripécias. Dava dó. Era preciso fugir de espelho pra que não sentisse mesmo a temida autopiedade. Crescer podia ser doloroso. Era um irresponsável irremediável e ponto. E abandonar tudo o que já provara pra tantos, em atos desvairados, heróicos, destemidos, corajosos, que lhe renderam a premissa de não saber a medida do tempo e do medo? Ele ainda estava só de roupão, bebendo seus goles frequentes de água, encolhido no sofá, observando os avôs de longe sem saco nenhum pra pensar.
Quando passava das dezenove horas, Leonardo chamou Tereza, que logo estava a seu dispor, solícita. Perguntou onde estavam todos. E como não pensou nisso antes? Porque não importava realmente, até aquelas horas. E Tereza também não lhe falaria de graça. Evitava-o temendo por alguma resposta atravessada, ou pela total indiferença. Ele bem sabia que ela não ia com sua cara desde criança, lembrava bem quando lhe chamava de tinhoso, de teimoso e desaforado. E ele também não ia com a dela. Como todos naquela casa, conquistara esta invisibilidade por parte dela, apesar de suspeitar de que ela o denunciasse, às vezes, à mãe. Talvez fosse quase forçada a ter que responder a que horas tinha ele chegado, com quem, e quantos se trancaram no seu quarto, na noite passada, e a que horas foram embora.  De qualquer maneira, até mesmo pra evitar algum eventual atrito com o patrãozinho, ela atendia quando ele a chamava, e respondia a ele quando era perguntada. Leonardo tão bem sabia que todos já deveriam estar sabendo, só ele não lembrava bem. Por isso não perguntou antes, por isso já eram sete da noite, porque ele sabia bem a resposta. Na sexta, antes que saísse, eles falaram mesmo que iriam pra Angra. Deviam continuar por lá.  Chegou a cogitar de que ninguém soubesse ainda. Depois procurou por algum B.O. sobre o criado-mudo, misturado a outros papéis estranhos, papéis oficiais e não encontrou nem algo parecido. E a carteira de motorista continuava lá. Certo mesmo, ainda que demasiadamente embriagado, era o fashe, aquele vislumbre impreciso, de que socara o carro num poste. Disso ele tinha quase certeza. Mas o que aconteceu depois, ele nem ousava adivinhar.
- A que horas eu cheguei? Com quem?
Tereza imaginara o dia todo que ele acabaria perguntando isto a ela, mais cedo ou mais tarde. Afinal, ele chegou em casa, às cinco da manhã, carregado pelo pai, apagado de cachaça. Ela respondeu-lhe o que tinha presenciado e disse ainda não saber direito o que tinha acontecido, mas que ele tinha batido o carro mesmo, e ligado pro pai, àquelas horas da madrugada, pra que ele fosse acudi-lo. Tereza lhe disse ainda que a mãe havia ligado, e disse que era pra ele não sair, ela chegaria antes das vinte e duas. Teve até mesmo a audácia de dizer que não tinha lhe passado o recado porque sabia que de nada adiantaria pedir que ele esperasse pela mãe. Dito e feito. A chuva já havia passado.
Pegou as chaves do carro do irmão, trocou-se num instante, escovou os dentes, e saiu sem dizer aonde iria. Ninguém perguntou quando ele passou pela sala e se dirigiu a garagem. Ele, como de hábito, não falou nada a ninguém. Mas antes que a portão da rua subisse por completo, durante aqueles segundos de espera, perdeu-se. Mirou a sala na transparência da vidraça, ainda respingada. Os dois velhos já estavam na terceira garrafa daquele vinho tinto, e abrindo seus dentes de dentadura em contínuas risadas desvairadas, ele percebia. Pareciam se divertir tanto. A enfermeira e Tereza estavam sentadas à mesa dos velhos agora. E o avô distribuía as cartas com entusiasmo e tremedeira. Leonardo permaneceu assim, no carro, imerso naquela cena, fora de si. O portão aberto, ele sentado ao volante, assistindo aqueles velhos e aquelas duas, sem sair do lugar. Passou por ele um estranho sentimento. Ele, que desde manhã, acompanhara cada passo do dia tedioso de seu avô, invejava amargamente a satisfação que aquele velho exibia na cara. Mas tal monotonia não lhe bastaria, com toda a certeza.  Não teria a paciência necessária. Talvez não tivesse ainda. Seu Leopoldo pra ele, e ele nem mesmo pensara nisto antes daquele momento, era mero figurante gagá, que não dizia coisa com coisa, que só dizia o que convinha, e parecia só ouvir o mesmo. Parecia já estar meio caduco, meio lelé, e até mesmo um pouco abatido. Devia ter lá seus probleminhas de saúde, mas talvez subornasse a enfermeira pra encherem a cara de vinho daquele jeito. Era sempre assim quando as filhas saiam. Mas não devia ser isto, não. Bebiam quando elas estavam lá. Não devia ter nenhum probleminha muito grave. Nem ele nem a avó. E nem Tereza, aquela abusada.
Como ele invejou o avô, por um momento. Amanhã os dois velhos deveriam sair pra caminhar, como dois cachorros acompanhados pela enfermeira, na orla da praia. Deveriam ainda comparecer à casa de alguns parentes. Tinham este hábito. Deveriam ir ao bingo semanal na quarta-feira e tantas outras coisas de idosos ativos e desocupados. Ele invejou a mediocridade de seu avô e seu contentamento com a simplicidade. Foi apenas por um instante. A seguir, ainda estagnado, sem ligar o motor, ele fez uma reconstituição o mais possível lógica do que teria acontecido. Devia ter batido o carro, bêbado, e chamado o pai pra livrá-lo daquele enrosco. E o pai devia ter feito isto mesmo, porque Leonardo estava ali, são e salvo e ainda com a carteira de motorista. Devia o homem ter ligado à mãe e contado tudo e soltado os cachorros nela, por não lhe manter nos trilhos. Ela devia estar furiosa, ansiando por chegar em casa, Tia Judith enchendo sua cabeça, os irmãos contando a todos os conhecidos, no suspense do encontro. Mas ele não ficaria esperando por eles, não. Ia sair por aí. Chegaria quando eles estivessem dormindo. Amanhã era segunda, quase todos tinham algo pra fazer pela manhã.
Finalmente ligou o carro e desceu devagar até ganhar a rua. Ele estava novo em folha pra seguir em frente e ignorar aquela noite ruim. Estava ciente de que teria que ouvir um bocado, já estava conformado, sabia como agir até que todos esquecessem, mas evitaria ao máximo o desgaste. Ele não sabia mesmo ouvir, nem quando convinha. E aquela inveja passageira do velho, dissipou-se rápido, até o veículo ganhar velocidade, e a mente ocupar-se com distração.

Inspirado na música de Rodrigo Amarante.

quarta-feira, 9 de março de 2011

Vamos fazer um filme

    Não quis acreditar que tinha sido há tanto tempo atrás. Dezoito anos passaram. Dezoito anos tinha naquela foto. Terceiro ano colegial, como se falava. Último ano do ensino médio, último passo antes da faculdade, ou do exército, ou tanto faz. O importante é que naquela época, naquele ano, ele ainda não tinha muitas perspectivas acerca do futuro do seu mundo.
          Paulinho, 18 anos. De cara lisa, de coração aberto. Um meio sorriso, meio torto, meio sem graça. Fotos 3x4 são assim mesmo, nunca se sabe que cara fazer. Seriedade ou dentes cerrados talvez soassem falsos demais. Pensou em fazer tantas expressões. Pose de homem, que agora era. Mas o clique é muito rápido, e na hora saiu aquilo, aquele meio sorriso, aquela boca torta.
          Com 18 anos, precisaria de novos documentos. Aquela foto 3x4 talvez tenha sido para a habilitação. Reservista, ou talvez para alguma matrícula. Detalhes que o tempo apagou da memória. Lembrava de coisas mais importantes daquele ano.  O colégio...
         Desde pequeno, desde sempre. Sempre estudara ali, pelo menos sempre que se lembrasse. Viu reformas, viu mudanças na diretoria. Viu a grande árvore do pátio ser cortada. Foi assim também com colegas, quase sempre os mesmos. Geralmente, é assim que as coisas acontecem em cidade pequena. Muitos conhecidos, muitos amigos de infância.
          Da turma do colégio, alguns eram seus vizinhos. Mais alguns eram filhos de colegas de trabalho dos pais. E quase, quase todos mesmo, tinham estudado juntos desde a infância. Uma turma legal, de pessoas que também se encontram fora das paredes da sala de aula. Vão ao cinema, ao parque, à praia. Alguns casais se formaram, alguns se desfizeram. Coisas normais de juventude, de pessoas de verdade.
          Paulinho tenta se recordar e força a memória em busca de imagens. Lembra da comissão de formatura. Das rifas, bingos e outras atividades nem sempre tão simples para arrecadar dinheiro. Planos mirabolantes de quem tinha, e acreditava em sonhos. Queria fazer cinema. Alguns colegas, engenharia. Nenhum optou por medicina, pelo que ele sabia. Planejavam viagens, reencontros semestrais da turma. Não podiam deixar que o tempo, ou a distância os separassem. Não aconteceria isso, eles eram unidos demais. Seria fácil...
           Agora, com tantos filmes feitos, Paulinho só se importa com aquela história que nunca foi contada, nunca foi reproduzida em tela nenhuma. O verão acabou cedo, muitas decisões a serem tomadas. Faculdade, exército, tanto faz.
           Nunca houve nenhum encontro depois daquele ano. Todos estavam ocupados demais e para ele, vê-los não era mais uma necessidade. O tempo sempre passa, os momentos antes despretensiosos, agora vazios e sem sentido. As histórias só valem a pena quando vividas na época certa. Tudo tem seu tempo, e o tempo de imaturidade já se foi. Sem um milhão de amigos, sem os irmãos e as irmãs. Era tão fácil, era somente existir, ser. E eles eram, só isso. Eram amigos, eram cúmplices, eram muito mais que isso.
            Hoje em dia, ele pensa, é tão raro alguém saber exatamente como se diz “Eu te amo”. Não há pessoas em que se veja beleza e fantasia. Impossível então é tentar começar de novo, não há mais um por todos, nem todos por um...

Inspirado na música de Renato Russo