Eu encontrei-a quando já não queria mais encontrar o meu amor, mas isto foi depois. Encontrei-a muito antes e nos encontramos algumas vezes após esta primeira vez que já não era a primeira, pois éramos colegas de sala. Por ironia, nem havíamos nos percebido até aquela noite, em sua casa, naquela festa estranha, a primeira de sua república. Em meio ao tumulto de gente bêbada e música alta, vi só nós dois, olhando a noite, debruçados na janela, falando de cinema, música, achando gostos comuns. Também estava alcoolizado e mesmo namorado de outra, a quem eu não amava, tentei a sorte em lhe beijar, nem sabendo ao menos que ela já estava acompanhada. Esta foi a primeira vez. Nas que se seguiram, trocamos beijos, carícias e bilhetes, compartilhamos um silêncio mútuo, nenhum dos dois ousava ultrapassar o limite demarcado da segurança. Foram vezes de encontros casuais, que migraram pra conversas honestas, em que o tema principal era justamente o medo do tal amor, esse andarilho vadio e ardiloso. Há de se haver uma vez para a narrativa das histórias.
Mas disse que eu encontrei-a quando já não queria mais procurar o meu amor e aí muito já havia passado desde então: outonos e primaveras inteiras, tantas tempestades assistimos cair lá fora, e quanto azul do céu merecíamos rever. Ela, uma jovem idosa, com a sabedoria prematura dos abençoados ou amaldiçoados com a inteligência. Eu, um idoso jovem, cheio de manias, brados de mau humor e reclamações batidas. Éramos o inusitado, ríamos dos outros, ríamos de nós, ríamos das nossas desilusões. Éramos dois jovens românticos e irremediáveis naqueles dias, dispostos a tudo por uma nova ilusão, bela, efêmera ou não, inócua ou o contrário, pois somos grandes de espírito. Não tínhamos medo da frustração. Eu já não queria mais procurar o meu amor, mas no fundo, na companhia dela, nas nossas horas desmedidas de longas conversas, embaladas por alguma inspiração infinita e misteriosa, eu já não precisava mais. Mas eu não suspeitava. Os amigos iam saindo e eu ia sobrando e ficando e voltando e ficando. Era apenas amizade. Eu encontrei-a quando estava distraído, observando-a, imerso em mim mesmo, temendo admitir que houvesse sucumbido novamente. Encontrei-a e duvidei. O quanto levou foi pra eu merecer.
Confesso que não sabia. Entender toda aquela mudança foi complexo e levou o tempo que precisou. Era muito clichê, eu costumava presumir. Nada foi estabelecido, imposto ou planejado. Fluía leve, sem rótulos nem expectadores, expectativas. Quando estávamos mergulhados em nossas dores individuais, revezávamos o papel de quem velava o sono de quem, quem enxugava o choro de quem. Éramos dois jovens poetas boêmios, hedonistas e incontestáveis. As metáforas desdobram, mas acabam por confundir. Ela me disse o que era o sufoco e eu a segui, com a premissa de dividirmos o fardo. Ninguém ousou dizer que era tarde demais, que era mesmo tão diferente assim. Aqueles que questionavam já diziam saber o que eu e ela demoramos a perceber.
O tempo. Ah!, o tempo... Ele se esvai sem se perceber. Sempre que olho pra trás, sinto a saudade de tanto tempo juntos, deixado pelo caminho, lembranças boas que se acumulam das vezes em que estivemos entre amigos, que rimos de doer, as vezes em que enfiamos a casa na sacola e rumamos pra mais uma aventura, juntos, sempre juntos. Pra nós, simplesmente sair de casa já é se aventurar, pois vejo que seus olhos ainda não se cansaram, não perderam a intensidade do brilho quando cruzam com os meus, ou quando se deparam com o mundo. Seus olhos não passam a segurança de quem pensa saber tudo, seus olhos têm fome de mundo. Ela me mostrou o sossego e eu lhe mostrei alguém a fim de acompanhá-la aonde ela quisesse ir, sem pressa. E só de vê-la assim, ao meu lado, as mãos dadas, saindo numa sempre instigante caminhada, eu penso em trocar tudo o que eu tenho pra poder levá-la a qualquer lugar que ela quisesse ir. E que pena eu não ter muito. Se o tempo, esse ferrenho ditador levá-la sem mim, eu sigo o seu encalço, pego nem se for uma carona e a encontro no caminho desta mesma hora.
Inspirado na música de Rodrigo Amarante.