terça-feira, 26 de julho de 2011

Dom Casmurro

           Tinha o envelope em mãos, mas hesitava, temia violar meu estado cômodo de convicção, abri-lo. Tremia. Há duas semanas levara o menino, escondido, a um laboratório pra colher o sangue que eu tinha certeza: não era meu. Aqueles olhos claros de Ezequiel nunca me enganaram, era realmente a cara de Escobar, sem pôr nem tirar, o exame de DNA que tinha em minhas mãos era apenas pra confirmar. Comprovar o que eu já sabia.
            Com o envelope em mãos, trancado em meu escritório e com o veneno infalível no bolso, um calibre 38 comprado numa esquina, eu tremia num misto de angústia e curiosidade. O café exalava seu aroma no vapor vindo da xícara e resolvi sentar enquanto tremia, com o envelope lacrado em mãos, tão facilmente violável. Mas hesitei mais uma vez e repousei o papel na mesa e trouxe a xícara pra perto de mim. Mirei no reflexo fusco aquele que fora apelidado de casmurro por um rapaz no trem e a alcunha pegou; egresso de um seminário torto, promessa de católico que acabou por não se concretizar. Antes tivesse se concretizado e eu não teria o infortúnio de me casar com Capitu e conhecer a força das ondas da ressaca dos seus olhos de cigana oblíqua e dissimulada. Confundia-me nas metáforas.
            Como não pude perceber? Tudo estava tão claro naquela hora. E fizeram tudo debaixo de meu nariz. Como pude ser tão ingênuo? José Dias soubesse, recorreria à Bíblia e soltaria o aforismo: “Maldito o homem que confia no homem.” Imagine, caro leitor, o escândalo ficassem sabendo que a criança era do falecido... Mas ninguém deveria saber, exceto a adúltera, que lhe trataria de escrever um bilhete. Peguei o envelope novamente e iria abri-lo pra acabar de vez com aquele tormento. Fiz o tal exame pra quê, afinal? Pra não restar nenhuma dúvida. Mas eu não a tinha. Quem possuía dúvidas e fazia questão de me jogá-las na cara a toda hora era a prudência... Meu velho senso de justiça, minha herança cristã. Pois deixei o exame de lado, peguei o bloco, a caneta e comecei. Tinha tempo, era domingo, acordariam tarde. Desta vez, em particular, com um susto.
            O conteúdo do bilhete era curto, objetivo. O remorso seria o pior castigo que podia dar a ela. Eu que cumprira a promessa e fora fiel  todo o tempo... Não deixaria a opção pra que ela se arrependesse de seus pecados e pedisse misericórdia, nem que fosse de joelhos. Sempre fora um marido exemplar e acreditava que este caso com Escobar até pudesse ter sido coisa impensada, um impulso desmedido e corrigido, pois desde que começara a suspeitar passei a policiá-la e não descobri outras aventuras. Mas mesmo tendo visto que se arrependera, não lhe daria o perdão e me mataria, manchando o carpete claro e com cheiro de lavanda. Tomei um gole de café. E outro. Esvaziei a xícara e a caixa de balas e mesmo sabendo que apenas uma resolveria, carreguei o cartucho. Era chegado o momento. Peguei o envelope, porém de tão cego, creio que nem ao menos conseguisse ler sua sentença.
            Transtornado, minhas mãos tremiam e enrugavam o papel de tão molhadas de suor. Suor gelado. Só de pensar que as mãos de Escobar correram a pele da minha mulher, sentia uma ira insana invadir meu sangue e me tirar o juízo. Logo aquele safado que sempre se mostrara tão honesto e virtuoso comigo, amigo de longa data, meu melhor amigo. Eu estava possuído por um enjoo  desmedido, por uma ânsia de vômito, azedo na boca da traição. Eu estava chorando feito menino, de coração partido, descrente da vida, tomado de ciúme, contorcido de dor, sem mais discernimento, de revólver na mão. E lembrei-me da vez que ficara com a pulga atrás da orelha com a viúva Sancha, visto que ainda não era, em que trocamos um aperto de mãos mais prolongado e estranho. Eu tinha que admitir: se ela topasse, eu iria, sem hesitar já que o mundo é dos espertos, não é isso, leitor, ansioso em saber o conteúdo do envelope? Escobar era menos culpado que Capitu. Ela permitira. Contudo, eu me afogava em lágrimas e não tinha forças pra rasgar o envelope, amassado entre as mãos suadas e frias, que também seguravam, trêmulas, a arma engatilhada. “Os sonhos do acordado são como os outros sonhos, tecem-se pelo desenho das nossas inclinações e das nossas recordações.” Os pesadelos também.
            Por que me traíste, Capitu? Por que dessa traição nascera aquela criatura? Estava fora de mim, queimando no inferno dos extremos das emoções, dopado de ciúme. E quase instintivamente, quando ela entrou sem bater e me chamou : “Bentinho...” Saiu apenas o bent, o inho ficou atravessado junto à bala que disparei contra seu peito.
            Desde menino fui muito de me pegar fora de tempo e espaço, perdido nos labirintos de minha cabeça, e voltando do lapso, percebi a tragédia. Os olhos de ressaca miravam nos meus atônitos, sem nada entender. Os olhos de ressaca eram agora de uma maré alta, transbordada, escorrendo pela face de dor. Fui acudi-la, tarde demais: Capitu já não queimava naquele corpo lânguido de morte, entre meus braços.
Em instantes, Ezequiel apareceu horrorizado, saiu correndo de volta e deve ter  chamado um vizinho que por sua vez chamou a polícia, pois quando as luzes das viaturas resplandeceram refletindo na parede, comecei a voltar a mim. Alguma instrução do policial pra que eu me rendesse vinha de um megafone distante, ainda não podia ouvir. Foi aí que me dei conta do envelope, caído perto de nós, ainda fechado. E desesperado, puxei-o enquanto depositava o corpo dela, já quase gelado no chão. Desta vez não hesitei, rasguei-o com precisão e finalmente li seu conteúdo, perplexo, e ainda mais dilacerado: Ezequiel, sim, não era meu.


Inspirado no romance de Machado de Assis.

terça-feira, 5 de julho de 2011

Cuida de Mim

Talvez fosse mentira tudo que ele dizia, mas era a única forma de se falar a verdade. Lembrou que fazia isso pra tentar ser maior do que era, ser inteiro, ser completo quem sabe.
Muitas vezes não precisava dizer nada, o seu silêncio falava por si só, e ele só queria um abrigo, confortável, seguro, sem brigas, sem mágoas, sem lágrimas.
Parecia que nada o satisfazia e quando essa angústia apertava o peito ele sentia medo, solidão... será que não fazia parte daquilo tudo? Tanto faz...
Por mais dúvidas que tivesse ele buscava algo, mas o que? Como poderia ser indeciso e ao mesmo tempo objetivo? Como ser objetivo quando o destino parece nebuloso?
Sentia mais pena dele mesmo do que de qualquer outra coisa, mas isso era permitido somente à ele sentir, porque no fim do dia juntava tudo e criava grandes asas, e voava, pra longe, pra bem alto, pra sempre... a noite ninguém o via, a noite tudo parecia igual, ainda mais lá de cima.
Toda vez que voava se transformava em qualquer coisa, podia ser tom, sabor e som... quando estava frio era calor e pensava as vezes que podia ser o clarão na vida de alguém, por fim era só escuridão, enquanto todos dormiam.
Queria muito mais, queria a paz que um dia alguém te ofereceu... não esquecia dela e isso o perturbava.
Pousaria em terra firme toda noite se ela o fizesse também, mas isso não acontecia e ele continuava lá em cima, olhando a todos, enquanto ninguém o via.
E na tentativa de buscar quem ele era talvez fosse mentira tudo que dizia, mas era a única forma de clamar..cuida de mim?

Inspirado na musica de O Teatro Mágico.