segunda-feira, 7 de novembro de 2011

Fotografia

Mais uma volta das tantas que tenho dado por aí, as idas e vindas dessa vida que aflige, desse tormento de futuro que agora se veste de medo, torna-se presente, e de maneira descarada medo real. É assim que me sinto nessa viagem de volta, olhando pela janela fotografando mentalmente toda essa paisagem vazia, essa paisagem que me enche de assombro e admiração. Nessas horas é que dorme longe a lembrança de eu ser feliz, de eu não saber o que fazer com todo o resto, com toda essa angústia que ficou como companheira.

Percorro essas fotografias imaginárias identificando personagens da minha história, enquanto isso as sombras vão ficando compridas, enchendo meu peito de silêncio e preguiça. Eu sequer noto a velocidade com que o tempo tem passado, abro a janela para que a barreira vitral não impeça minhas fotografias de tomarem vida e lá de fora sopra um vento que dissolve todo cansaço, o avesso do meu esforço insignificante, um vento que sopra forte e cortante arrastando-me, para que eu me veja e me sinta verdadeiramente. É nesse momento tão particular, entre o vento, as fotografias e eu, que posso sentir Deus, ou a Força do Universo, numa simplicidade divina, tocante, algo de sobrenatural, como a única via capaz de me deixar as pista pra eu ser feliz.

Nesse pequeno momento de encantamento divino, entre cores, figuras e motivos, me lembro de você, e é como se eu fosse forçado a voltar de um transe, me lembro porque estou aqui nesse ônibus, voltando sabe-se lá pra onde, me lembro de todas as nossas promessas não cumpridas e do desejo de abandonar-te, abandonar-me, abandonarmo-nos...

E agora é mais uma viagem de volta, desses retornos agora tão constantes, sempre com o mesmo objetivo, medo, cura, autoconhecimento, ou quem sabe apenas fuga pura, um ato desesperado de ação, para distanciar da inércia dessas fotografias em que os movimentos limitam-se aos laços invisíveis que havia.

E enquanto a tarde me toma pelos braços eu sigo, sigo para que esse dia passe, sigo para ver o sol que agora já não acompanha seus olhos, o mesmo sol testemunha dos nossos dias felizes. Sigo porque hei de seguir, sei que apenas cheguei ao futuro, onde talvez eu devesse mesmo estar, sempre fui imediatista ou quem sabe “futurista” algo mais do que isto, e guardo histórias, bebidas e sorrisos, trago-os fotografados, como aquela nossa antiga mania de fotografar folhas, nuvens, e poentes, como aquela nossa habilidade de fotografar sentimentos e colecionar sonhos. Minha mente é meu quarto, onde eu descanso, onde agora você dorme tranqüila, de maneira que ainda posso admirá-la, possuí-la, e assim te guardo sereno, pois quando o dia não passar de um retrato colorindo de saudade esse meu quarto.

Ah... Ai sim eu vou ter certeza de fato que eu fui feliz.

Inspirado na música de Leoni e Léo Jaime

segunda-feira, 31 de outubro de 2011

Aquarela

Maravilhas do mundo transpiram harmonia, onde os sentidos falam, sem que palavras sejam precisas, tal que as idéias fluem simples e claras na nossa mente como uma página em branco. Um espaço livre, onde colocamos todos os nossos sonhos, toda a nossa imaginação. Cenas completas com fundo musical e palavras certas, finais e desfechos inesperados.
         De onde provém, no entanto, essa beleza arraigada daquilo que é único? Não de uma contraposição teórica, mas de uma concepção muito profunda que ultrapassa explicações da divindade. Ao longe entoa a música. Com uma tela e um pincel, dou meus primeiros rabiscos de um sol amarelo chartreuse yellow com um tom alaranjado, e vejo de minha janela que lá fora a chuva e o vento que agitavam com furor as árvores começam a cessar, então eu continuo, assim percebendo um grande poder... agora com cinco ou seis retas, corro o pincel e dou forma ao meu castelo de argila. Fechei meus olhos, e lá estava eu numa gravidade, numa força forte, eletromagnetismo e uma força fraca, numa resultante à superfície da Terra, da atracção da massa e da pseudo força centrífuga, pareço uma linda gaivota a voar no céu, contornando a imensa curva norte e sul. Embarco nas asas da imaginção, tudo é possivel quando sentimos, tudo é possivel quando cremos  e quando temos um coração cheio de amor.
           Mas há muitos que se colocam frente a si e a seu destino desnudado do aparato lógico que por fim não se vê diante de um sistema de idéias, mas diante de fatos, e precisamente de um fato fundamental que nenhuma lógica pode explicar. Continuo a voar, é tanto céu e mar, vejo tudo daqui de cima, entre as nuvens vou surgindo, viajando para o Havaí, Pequim e Istambul, no peito carrego a certeza de que é possível ir alem do que pensaria poder, e no coração a saudade do beijo azul. Abro meus olhos, e vejo uma nova tela, uma nova página em branco. Fico ali, intacto na presença da força latente da esperança, ostentando serena aliança com as lembranças. Corro o pincel e pinto um barco à vela brando navegando, basta imaginar ele está partindo, sereno e lindo. Lá traz na velha ponte eu fiquei em dúvida se atravessaria nadando ou se pegaria o velho barquinho e ir no máximo que conseguisse, e cá estou eu, com um simples compasso eu giro e faço um mundo e atravesso de uma América a outra encontrando com alguns bons amigos.
Pensamentos e imagens se chocam dentro de minha cabeça, perco os sentidos e deixo cair um pinguinho de tinta que escorre até a borda da tela, se desprende e cai sobre a ponta de meu velho sapato. Desconcentrado eu me levanto e vou em direção a janela, e de lá eu vejo o sol chartreuse amarelo, vejo um imenso castelo de argila, sobre as nuvens surge um avião rosa grená, tudo em volta colorido, gaivotas a revoarem, e agora eu era um menino, fiquei surpreso, então fechei meus olhos e vi tudo em branco, ao longe a música ainda entoava, comecei a caminhar numa linda passarela de uma aquarela, sem tempo, sem piedade, e sem hora, rumo ao futuro sem pedir licença, eu caminhava e caminhando cheguei num muro, olhei para traz e via apenas imagens do meu passado. Tornei a olhar para frente e muro ainda jazia intacto.
Abri meus olhos e estava eu ali na janela ao som da chuva que insistentemente caía do lado de fora, as árvores balançando com o furor do vento. Tudo tinha sumido, não havia mais sol e nem castelo, voltei para as minhas telas e estavam todas ali em branco, nada de cinco e seis retas, e nada de rabiscos. Sentei-me e fiquei a observar aquelas páginas em branco quando por fim avistei que na ponta de um par do meu velho sapato havia um pinguinho de tinta, então percebi que tudo tinha sido real, percebi que os sentidos falam, sem que palavras sejam precisas, tal que as idéias e imaginações fluem simples e claras em nossa mente como uma página em branco, um espaço livre onde a cada manhã temos a grande oportunidade de pintar o nosso dia, de pintar o nosso futuro. Correndo o pincel e dar forma aos nossos sonhos, com cenas completas e desenhos certos. Finais e desfechos inesperados vai depender de cada um, pois a tela já pintada ninguém descolorirá.


- Inspirado na música Aquarela, de Toquinho.

Autor: Jonathas Eliel

segunda-feira, 17 de outubro de 2011

Lá de longe

                 Longe, lá de longe. Lá mesmo onde de tão longe a beleza do mundo se esconde.  Mande para ontem uma voz que se expanda além das buzinas e suspenda esse instante, efêmero. Lá de longe... Cante para hoje. E onde a beleza do mundo se esconde? De onde se esconde, esconde-se do quê? Há uma harmonia infiltrada no caos, irretocável. Há muitos de nós correndo a passos largos, atropelando uns aos outros, levando um tropeção, um esbarrão. Ignorando aquilo que não queremos perceber. Mas longe, lá de longe. É um hábito todo esse afastamento seguro das faixas, demarcações, filas, protocolos, burocracia. Cante para hoje nascer um belo dia e não termos a necessidade de reparar todas as nuances presentes no cinza desse céu poluído. Mande, lá de longe, de onde toda a beleza do mundo se esconde.
                Essa voz que se expande tomando tudo para si, roçando campos inteiros, envolvendo enormes montanhas é o mesmo vento que lamenta por aqui, sibilando espremido por entre estes prédios de ferro e cimento. Essa voz que suspende o instante, roubando toda a atenção, que desfaz os incômodos, as incertezas, ouve-se pouco, abafada pelo burburinho, fones de ouvido, sirenes e afins. Passa-se quase sempre muito apressado, imerso em outras preocupações. Cante para hoje seu canto triste, leve-nos com você para onde, de tão longe, a beleza do mundo se esconde, preserva-se. Reserva-se.
                Longe, tão longe. Onde toda a beleza do mundo se esconde? De tão longe, observa-nos no vazio de nossas formas em frenesi, no entorno de nossa sombra projetada por nossos sóis noturnos artificiais. Observa-nos e nos renega sua presença. Mande para ontem um mapa de seus caminhos nômades. Mande para ontem um mapa sequer abstrato, esboçado a rimas e poesias, mas dê indícios de por onde anda e de onde se esconde e por que se esconde, esconde-se do quê?
                Está aqui entre nós como uma obsessão pelo belo e nada mais? A beleza está nos olhos de quem vê? A harmonia está nos ouvidos de quem escuta? A tristeza é um fardo solitário com quem não se pode dividir? A melancolia é uma besteira que os mais desocupados elegem como refúgio? Por que todo esse apelo pelo drama e a tragédia? O vento, mesmo fétido, carregando consigo os gases e dejetos da metrópole pouco diz, não suspende nada, não se expande, batendo-se por estes corredores de espigões, labirinto de trajetórias cegas, surdas e mudas. Cante para o amanhã. Longe, lá de longe, de onde não se sabe onde. De onde toda a beleza do mundo se esconde.


Inspirado na música dos Tribalistas.

terça-feira, 11 de outubro de 2011

Antes das seis

          Já me perguntei, por tantas vezes, quem fora o imbecil e tolo que havia criado esse torpe sentimento. O Amor, ah o Amor. Assim mesmo, com a inicial maiúscula. Assim me refiro a essa doce tormenta. Poder e força. O Amor é como a fé. Acreditar naquilo que não se pode ver. Quem acredita e quem vê? Apesar de tocar e tocar e tocar, ainda não há um diagnóstico plausível para essa doença. Já imagino o médico olhando no fundo dos meus olhos e dizendo: _É, você está demasiadamente corado e com o brilho anormal. Sintoma de apaixonado. Não, não existe isso. Como saber que está amando? Há uma receita para amar? E o contrário? Há como evitar cair nos laços dessa armadilha voraz? Algoz da razão. Há uma linha bem tênue entre a paixão e isso, que outrora tentei evitar. Mas, não sei o que aconteceu. Quer dizer, até sei, mas não consigo explicar como.
         Isso não pode virar uma absurda teoria com hipóteses vãs. Tantos já escreveram sobre ele, embora nem todos o conheçam, de verdade. Mas quem pode afirmar com certeza que conhece algo que já foi tema de poesias, filmes e canções? A música que, por si só, é uma manifestação do Amor. Ágape, Pragma e Eros. O tema é complexo e vem de uma antiguidade remota.
         Não quero explicações e nem quero questionar nada. Hoje, quinze anos após aquela trágica véspera de feriado, eu quero sossego e paz. Encontrei a resposta que queria. E, com mais conhecimento de causa que o filósofo Sócrates, eu descrevo o real. Nem sublime, nem platônico. O Amor de verdade, do cotidiano insalubre, das agruras e dos obstáculos. Consigo vê-lo daqui, perto do meu travesseiro. E a minha maior dúvida agora, o motivo que perturba o meu sono, é saber de quem será a vez de fazer o café. Vamos ver se acerto, dos dois quem acordará primeiro.
Inspirado na música de Renato Russo

domingo, 4 de setembro de 2011

Esconderijo

Ele um dia acordou, sabia que era um dia comum mas algo o inquietava, não sabia o que era, só sabia que tinha que cumprir com suas funções necessárias, práticas e precisas.
Primeiro passo, tomar um banho pra tentar tirar de seu corpo a preguiça, a indisposição e todo o resto de vestígios deixados pelo sono, pelos sonhos... Sonhos... durante o banho imaginava todos eles escorrendo pelo ralo, o ralo da razão, o ralo da incerteza, o ralo da indecisão.
Na toalha que se secava ficava um pouco mais daquilo que depois seria lavado, estendido e depois de seco guardado em seu guarda roupas um pouco desarrumado.
Saiu do banheiro, os pés ainda úmidos, sentou em sua cama e lembrou que mal começava seu dia e já tinha que tomar uma decisão importante, qual seria a fantasia de hoje, qual figurino cobriria aquele corpo. Decidiu, trocou-se, voltou ao banheiro e escovou os dentes, em seguida modelou seu cabelo de tal forma que agradasse a quem o olhasse...enfim olhou-se no espelho...e o que via? Um menino, um homem, uma criança, um velho, um amigo, um ator... uma máscara... agora pronta pra sair e viver alguns dos muitos personagens.
Tinha pressa em sair, pressa em pegar seu ônibus, pressa em chegar a algum lugar que por muitas vezes não sabia onde.
Tudo passava depressa, os ponteiros do relógio pareciam estar contra ele, e entre muitos bom dias, boa tardes, estou bem e você... entre beijos e abraços, aplausos e demonstrações de carinho e amor se deu conta que era hora de voltar para o esconderijo.
No caminho tentava refazer o seu dia, mas tudo passou tão rápido que nada fazia sentido, só queria chegar, só queria tirar todo aquele peso que não estava só na mochila...o que deixava e o que levava daquele dia?
Segunda, terça, quarta, quinta, sexta, e já era sábado e depois domingo, não entendia porque os dias eram contados assim...a tecnologia o aproximava mais das pessoas, e isso só crescia, mensagens, elogios, mais amor e carinho, talvez um pouco de interesse, desinteresse também...era muita gente, muitos nomes, muitos rostos, muitas frases, muita coisa acontecendo.
Responsabilidade... essa palavra pesava demais quando se tratava de missão... Ele agora chegou, foi direto ao espelho e se olhou... as marcas daqueles dias derretiam a máscara posta pela manhã, despiu-se, entrou novamente debaixo da água... não era o corpo que lavava, e sim a alma, a alma nua e pura, impura, suja, fadada...
Antes de deitar-se lembrou que não respondeu a algumas pessoas, precisava cumprir com isso pra que elas se sentissem bem, era muita gente...onde isso iria acabar?
Algo o sufocava, uma alegria e ao mesmo tempo uma agonia, uma tristeza... resolveu deitar-se em seu quarto escuro... não fechava os olhos, ouvia o barulho vindo de fora e lembrou que estavam todos lá, a espera de uma nova foto, um novo vídeo, uma nova frase, uma novidade... E se ele não tivesse nada disso no dia seguinte? Não consta em seus documentos de nascimento algum parágrafo que dite essas regras, então porque isso virou obrigação?
Agora era tarde pra voltar atrás, e sabia que dali a algumas horas um novo dia começaria, e ele ,após vestir mais uma de suas máscaras guardadas a sete chaves, interpretaria com primor mais um de seus personagens, qual? Não sabia....
Era muita gente esperando ansiosamente as luzes se acender e ele aparecer, mas lembrou que estava deitado, olhando para nada em seu quarto escuro...parecia que estava tudo em silencio do lado de fora...enfim entendeu que estando no fóco ou na coxia escura, estava sempre ...sozinho...

Inspirado na música Esconderijo de Sandy Leah

quinta-feira, 1 de setembro de 2011

A Programação do Dia


Letras, números, lados e ruas, informações nocivas à sua existência. A placa de pare e a vontade de se jogar ao caos dos carros passando.
Diálogos estridentes e os nervos entre os dentes, os sussurros e os cochichos daqueles que passam, e aqueles que passam nem percebe que sua cabeça não pára de crescer. O Lixo de seu inferno é o que alimenta esse crescimento, e ele tão cego nem nota. A pressa com que conduz o dia não o leva ao destino que ele mesmo nem lembra.
Diante dele pessoas, passadas, papéis, texto em forma de monstros, monstros em forma de gente e gente de forma abstrata “e onde andam seus sorrisos de ocasião? Sorrisos são feitos para serem ostentados.”
Sua cabeça transmuta e ele nem sente, suas pernas só andam e ele nem chega, ao final do dia o banho não refresca, evapora com o calor de sua imensa cabeça e ele não dorme.
Vamos lá!
Mais um dia e a engenhosa pressa lhe toma pela mão e ele nem percebe, afinal onde estará sua vida que ninguém vê?
Os diálogos são os mesmos, os carros por vezes alteram, e as pessoas insistem nos gritos, sussurros e preces
Na esquina mais próxima, dentro da tua apatia, ainda cabe espaço, para o interesse mecânico.
E então de repente sua existência se faz conhecida, mais também pudera né, em meio a explosão de sua cabeça ninguém se espantar, tempo esgotado.

Inspirado na música de O Teatro Mágico

terça-feira, 26 de julho de 2011

Dom Casmurro

           Tinha o envelope em mãos, mas hesitava, temia violar meu estado cômodo de convicção, abri-lo. Tremia. Há duas semanas levara o menino, escondido, a um laboratório pra colher o sangue que eu tinha certeza: não era meu. Aqueles olhos claros de Ezequiel nunca me enganaram, era realmente a cara de Escobar, sem pôr nem tirar, o exame de DNA que tinha em minhas mãos era apenas pra confirmar. Comprovar o que eu já sabia.
            Com o envelope em mãos, trancado em meu escritório e com o veneno infalível no bolso, um calibre 38 comprado numa esquina, eu tremia num misto de angústia e curiosidade. O café exalava seu aroma no vapor vindo da xícara e resolvi sentar enquanto tremia, com o envelope lacrado em mãos, tão facilmente violável. Mas hesitei mais uma vez e repousei o papel na mesa e trouxe a xícara pra perto de mim. Mirei no reflexo fusco aquele que fora apelidado de casmurro por um rapaz no trem e a alcunha pegou; egresso de um seminário torto, promessa de católico que acabou por não se concretizar. Antes tivesse se concretizado e eu não teria o infortúnio de me casar com Capitu e conhecer a força das ondas da ressaca dos seus olhos de cigana oblíqua e dissimulada. Confundia-me nas metáforas.
            Como não pude perceber? Tudo estava tão claro naquela hora. E fizeram tudo debaixo de meu nariz. Como pude ser tão ingênuo? José Dias soubesse, recorreria à Bíblia e soltaria o aforismo: “Maldito o homem que confia no homem.” Imagine, caro leitor, o escândalo ficassem sabendo que a criança era do falecido... Mas ninguém deveria saber, exceto a adúltera, que lhe trataria de escrever um bilhete. Peguei o envelope novamente e iria abri-lo pra acabar de vez com aquele tormento. Fiz o tal exame pra quê, afinal? Pra não restar nenhuma dúvida. Mas eu não a tinha. Quem possuía dúvidas e fazia questão de me jogá-las na cara a toda hora era a prudência... Meu velho senso de justiça, minha herança cristã. Pois deixei o exame de lado, peguei o bloco, a caneta e comecei. Tinha tempo, era domingo, acordariam tarde. Desta vez, em particular, com um susto.
            O conteúdo do bilhete era curto, objetivo. O remorso seria o pior castigo que podia dar a ela. Eu que cumprira a promessa e fora fiel  todo o tempo... Não deixaria a opção pra que ela se arrependesse de seus pecados e pedisse misericórdia, nem que fosse de joelhos. Sempre fora um marido exemplar e acreditava que este caso com Escobar até pudesse ter sido coisa impensada, um impulso desmedido e corrigido, pois desde que começara a suspeitar passei a policiá-la e não descobri outras aventuras. Mas mesmo tendo visto que se arrependera, não lhe daria o perdão e me mataria, manchando o carpete claro e com cheiro de lavanda. Tomei um gole de café. E outro. Esvaziei a xícara e a caixa de balas e mesmo sabendo que apenas uma resolveria, carreguei o cartucho. Era chegado o momento. Peguei o envelope, porém de tão cego, creio que nem ao menos conseguisse ler sua sentença.
            Transtornado, minhas mãos tremiam e enrugavam o papel de tão molhadas de suor. Suor gelado. Só de pensar que as mãos de Escobar correram a pele da minha mulher, sentia uma ira insana invadir meu sangue e me tirar o juízo. Logo aquele safado que sempre se mostrara tão honesto e virtuoso comigo, amigo de longa data, meu melhor amigo. Eu estava possuído por um enjoo  desmedido, por uma ânsia de vômito, azedo na boca da traição. Eu estava chorando feito menino, de coração partido, descrente da vida, tomado de ciúme, contorcido de dor, sem mais discernimento, de revólver na mão. E lembrei-me da vez que ficara com a pulga atrás da orelha com a viúva Sancha, visto que ainda não era, em que trocamos um aperto de mãos mais prolongado e estranho. Eu tinha que admitir: se ela topasse, eu iria, sem hesitar já que o mundo é dos espertos, não é isso, leitor, ansioso em saber o conteúdo do envelope? Escobar era menos culpado que Capitu. Ela permitira. Contudo, eu me afogava em lágrimas e não tinha forças pra rasgar o envelope, amassado entre as mãos suadas e frias, que também seguravam, trêmulas, a arma engatilhada. “Os sonhos do acordado são como os outros sonhos, tecem-se pelo desenho das nossas inclinações e das nossas recordações.” Os pesadelos também.
            Por que me traíste, Capitu? Por que dessa traição nascera aquela criatura? Estava fora de mim, queimando no inferno dos extremos das emoções, dopado de ciúme. E quase instintivamente, quando ela entrou sem bater e me chamou : “Bentinho...” Saiu apenas o bent, o inho ficou atravessado junto à bala que disparei contra seu peito.
            Desde menino fui muito de me pegar fora de tempo e espaço, perdido nos labirintos de minha cabeça, e voltando do lapso, percebi a tragédia. Os olhos de ressaca miravam nos meus atônitos, sem nada entender. Os olhos de ressaca eram agora de uma maré alta, transbordada, escorrendo pela face de dor. Fui acudi-la, tarde demais: Capitu já não queimava naquele corpo lânguido de morte, entre meus braços.
Em instantes, Ezequiel apareceu horrorizado, saiu correndo de volta e deve ter  chamado um vizinho que por sua vez chamou a polícia, pois quando as luzes das viaturas resplandeceram refletindo na parede, comecei a voltar a mim. Alguma instrução do policial pra que eu me rendesse vinha de um megafone distante, ainda não podia ouvir. Foi aí que me dei conta do envelope, caído perto de nós, ainda fechado. E desesperado, puxei-o enquanto depositava o corpo dela, já quase gelado no chão. Desta vez não hesitei, rasguei-o com precisão e finalmente li seu conteúdo, perplexo, e ainda mais dilacerado: Ezequiel, sim, não era meu.


Inspirado no romance de Machado de Assis.