segunda-feira, 7 de novembro de 2011

Fotografia

Mais uma volta das tantas que tenho dado por aí, as idas e vindas dessa vida que aflige, desse tormento de futuro que agora se veste de medo, torna-se presente, e de maneira descarada medo real. É assim que me sinto nessa viagem de volta, olhando pela janela fotografando mentalmente toda essa paisagem vazia, essa paisagem que me enche de assombro e admiração. Nessas horas é que dorme longe a lembrança de eu ser feliz, de eu não saber o que fazer com todo o resto, com toda essa angústia que ficou como companheira.

Percorro essas fotografias imaginárias identificando personagens da minha história, enquanto isso as sombras vão ficando compridas, enchendo meu peito de silêncio e preguiça. Eu sequer noto a velocidade com que o tempo tem passado, abro a janela para que a barreira vitral não impeça minhas fotografias de tomarem vida e lá de fora sopra um vento que dissolve todo cansaço, o avesso do meu esforço insignificante, um vento que sopra forte e cortante arrastando-me, para que eu me veja e me sinta verdadeiramente. É nesse momento tão particular, entre o vento, as fotografias e eu, que posso sentir Deus, ou a Força do Universo, numa simplicidade divina, tocante, algo de sobrenatural, como a única via capaz de me deixar as pista pra eu ser feliz.

Nesse pequeno momento de encantamento divino, entre cores, figuras e motivos, me lembro de você, e é como se eu fosse forçado a voltar de um transe, me lembro porque estou aqui nesse ônibus, voltando sabe-se lá pra onde, me lembro de todas as nossas promessas não cumpridas e do desejo de abandonar-te, abandonar-me, abandonarmo-nos...

E agora é mais uma viagem de volta, desses retornos agora tão constantes, sempre com o mesmo objetivo, medo, cura, autoconhecimento, ou quem sabe apenas fuga pura, um ato desesperado de ação, para distanciar da inércia dessas fotografias em que os movimentos limitam-se aos laços invisíveis que havia.

E enquanto a tarde me toma pelos braços eu sigo, sigo para que esse dia passe, sigo para ver o sol que agora já não acompanha seus olhos, o mesmo sol testemunha dos nossos dias felizes. Sigo porque hei de seguir, sei que apenas cheguei ao futuro, onde talvez eu devesse mesmo estar, sempre fui imediatista ou quem sabe “futurista” algo mais do que isto, e guardo histórias, bebidas e sorrisos, trago-os fotografados, como aquela nossa antiga mania de fotografar folhas, nuvens, e poentes, como aquela nossa habilidade de fotografar sentimentos e colecionar sonhos. Minha mente é meu quarto, onde eu descanso, onde agora você dorme tranqüila, de maneira que ainda posso admirá-la, possuí-la, e assim te guardo sereno, pois quando o dia não passar de um retrato colorindo de saudade esse meu quarto.

Ah... Ai sim eu vou ter certeza de fato que eu fui feliz.

Inspirado na música de Leoni e Léo Jaime

segunda-feira, 31 de outubro de 2011

Aquarela

Maravilhas do mundo transpiram harmonia, onde os sentidos falam, sem que palavras sejam precisas, tal que as idéias fluem simples e claras na nossa mente como uma página em branco. Um espaço livre, onde colocamos todos os nossos sonhos, toda a nossa imaginação. Cenas completas com fundo musical e palavras certas, finais e desfechos inesperados.
         De onde provém, no entanto, essa beleza arraigada daquilo que é único? Não de uma contraposição teórica, mas de uma concepção muito profunda que ultrapassa explicações da divindade. Ao longe entoa a música. Com uma tela e um pincel, dou meus primeiros rabiscos de um sol amarelo chartreuse yellow com um tom alaranjado, e vejo de minha janela que lá fora a chuva e o vento que agitavam com furor as árvores começam a cessar, então eu continuo, assim percebendo um grande poder... agora com cinco ou seis retas, corro o pincel e dou forma ao meu castelo de argila. Fechei meus olhos, e lá estava eu numa gravidade, numa força forte, eletromagnetismo e uma força fraca, numa resultante à superfície da Terra, da atracção da massa e da pseudo força centrífuga, pareço uma linda gaivota a voar no céu, contornando a imensa curva norte e sul. Embarco nas asas da imaginção, tudo é possivel quando sentimos, tudo é possivel quando cremos  e quando temos um coração cheio de amor.
           Mas há muitos que se colocam frente a si e a seu destino desnudado do aparato lógico que por fim não se vê diante de um sistema de idéias, mas diante de fatos, e precisamente de um fato fundamental que nenhuma lógica pode explicar. Continuo a voar, é tanto céu e mar, vejo tudo daqui de cima, entre as nuvens vou surgindo, viajando para o Havaí, Pequim e Istambul, no peito carrego a certeza de que é possível ir alem do que pensaria poder, e no coração a saudade do beijo azul. Abro meus olhos, e vejo uma nova tela, uma nova página em branco. Fico ali, intacto na presença da força latente da esperança, ostentando serena aliança com as lembranças. Corro o pincel e pinto um barco à vela brando navegando, basta imaginar ele está partindo, sereno e lindo. Lá traz na velha ponte eu fiquei em dúvida se atravessaria nadando ou se pegaria o velho barquinho e ir no máximo que conseguisse, e cá estou eu, com um simples compasso eu giro e faço um mundo e atravesso de uma América a outra encontrando com alguns bons amigos.
Pensamentos e imagens se chocam dentro de minha cabeça, perco os sentidos e deixo cair um pinguinho de tinta que escorre até a borda da tela, se desprende e cai sobre a ponta de meu velho sapato. Desconcentrado eu me levanto e vou em direção a janela, e de lá eu vejo o sol chartreuse amarelo, vejo um imenso castelo de argila, sobre as nuvens surge um avião rosa grená, tudo em volta colorido, gaivotas a revoarem, e agora eu era um menino, fiquei surpreso, então fechei meus olhos e vi tudo em branco, ao longe a música ainda entoava, comecei a caminhar numa linda passarela de uma aquarela, sem tempo, sem piedade, e sem hora, rumo ao futuro sem pedir licença, eu caminhava e caminhando cheguei num muro, olhei para traz e via apenas imagens do meu passado. Tornei a olhar para frente e muro ainda jazia intacto.
Abri meus olhos e estava eu ali na janela ao som da chuva que insistentemente caía do lado de fora, as árvores balançando com o furor do vento. Tudo tinha sumido, não havia mais sol e nem castelo, voltei para as minhas telas e estavam todas ali em branco, nada de cinco e seis retas, e nada de rabiscos. Sentei-me e fiquei a observar aquelas páginas em branco quando por fim avistei que na ponta de um par do meu velho sapato havia um pinguinho de tinta, então percebi que tudo tinha sido real, percebi que os sentidos falam, sem que palavras sejam precisas, tal que as idéias e imaginações fluem simples e claras em nossa mente como uma página em branco, um espaço livre onde a cada manhã temos a grande oportunidade de pintar o nosso dia, de pintar o nosso futuro. Correndo o pincel e dar forma aos nossos sonhos, com cenas completas e desenhos certos. Finais e desfechos inesperados vai depender de cada um, pois a tela já pintada ninguém descolorirá.


- Inspirado na música Aquarela, de Toquinho.

Autor: Jonathas Eliel

segunda-feira, 17 de outubro de 2011

Lá de longe

                 Longe, lá de longe. Lá mesmo onde de tão longe a beleza do mundo se esconde.  Mande para ontem uma voz que se expanda além das buzinas e suspenda esse instante, efêmero. Lá de longe... Cante para hoje. E onde a beleza do mundo se esconde? De onde se esconde, esconde-se do quê? Há uma harmonia infiltrada no caos, irretocável. Há muitos de nós correndo a passos largos, atropelando uns aos outros, levando um tropeção, um esbarrão. Ignorando aquilo que não queremos perceber. Mas longe, lá de longe. É um hábito todo esse afastamento seguro das faixas, demarcações, filas, protocolos, burocracia. Cante para hoje nascer um belo dia e não termos a necessidade de reparar todas as nuances presentes no cinza desse céu poluído. Mande, lá de longe, de onde toda a beleza do mundo se esconde.
                Essa voz que se expande tomando tudo para si, roçando campos inteiros, envolvendo enormes montanhas é o mesmo vento que lamenta por aqui, sibilando espremido por entre estes prédios de ferro e cimento. Essa voz que suspende o instante, roubando toda a atenção, que desfaz os incômodos, as incertezas, ouve-se pouco, abafada pelo burburinho, fones de ouvido, sirenes e afins. Passa-se quase sempre muito apressado, imerso em outras preocupações. Cante para hoje seu canto triste, leve-nos com você para onde, de tão longe, a beleza do mundo se esconde, preserva-se. Reserva-se.
                Longe, tão longe. Onde toda a beleza do mundo se esconde? De tão longe, observa-nos no vazio de nossas formas em frenesi, no entorno de nossa sombra projetada por nossos sóis noturnos artificiais. Observa-nos e nos renega sua presença. Mande para ontem um mapa de seus caminhos nômades. Mande para ontem um mapa sequer abstrato, esboçado a rimas e poesias, mas dê indícios de por onde anda e de onde se esconde e por que se esconde, esconde-se do quê?
                Está aqui entre nós como uma obsessão pelo belo e nada mais? A beleza está nos olhos de quem vê? A harmonia está nos ouvidos de quem escuta? A tristeza é um fardo solitário com quem não se pode dividir? A melancolia é uma besteira que os mais desocupados elegem como refúgio? Por que todo esse apelo pelo drama e a tragédia? O vento, mesmo fétido, carregando consigo os gases e dejetos da metrópole pouco diz, não suspende nada, não se expande, batendo-se por estes corredores de espigões, labirinto de trajetórias cegas, surdas e mudas. Cante para o amanhã. Longe, lá de longe, de onde não se sabe onde. De onde toda a beleza do mundo se esconde.


Inspirado na música dos Tribalistas.

terça-feira, 11 de outubro de 2011

Antes das seis

          Já me perguntei, por tantas vezes, quem fora o imbecil e tolo que havia criado esse torpe sentimento. O Amor, ah o Amor. Assim mesmo, com a inicial maiúscula. Assim me refiro a essa doce tormenta. Poder e força. O Amor é como a fé. Acreditar naquilo que não se pode ver. Quem acredita e quem vê? Apesar de tocar e tocar e tocar, ainda não há um diagnóstico plausível para essa doença. Já imagino o médico olhando no fundo dos meus olhos e dizendo: _É, você está demasiadamente corado e com o brilho anormal. Sintoma de apaixonado. Não, não existe isso. Como saber que está amando? Há uma receita para amar? E o contrário? Há como evitar cair nos laços dessa armadilha voraz? Algoz da razão. Há uma linha bem tênue entre a paixão e isso, que outrora tentei evitar. Mas, não sei o que aconteceu. Quer dizer, até sei, mas não consigo explicar como.
         Isso não pode virar uma absurda teoria com hipóteses vãs. Tantos já escreveram sobre ele, embora nem todos o conheçam, de verdade. Mas quem pode afirmar com certeza que conhece algo que já foi tema de poesias, filmes e canções? A música que, por si só, é uma manifestação do Amor. Ágape, Pragma e Eros. O tema é complexo e vem de uma antiguidade remota.
         Não quero explicações e nem quero questionar nada. Hoje, quinze anos após aquela trágica véspera de feriado, eu quero sossego e paz. Encontrei a resposta que queria. E, com mais conhecimento de causa que o filósofo Sócrates, eu descrevo o real. Nem sublime, nem platônico. O Amor de verdade, do cotidiano insalubre, das agruras e dos obstáculos. Consigo vê-lo daqui, perto do meu travesseiro. E a minha maior dúvida agora, o motivo que perturba o meu sono, é saber de quem será a vez de fazer o café. Vamos ver se acerto, dos dois quem acordará primeiro.
Inspirado na música de Renato Russo

domingo, 4 de setembro de 2011

Esconderijo

Ele um dia acordou, sabia que era um dia comum mas algo o inquietava, não sabia o que era, só sabia que tinha que cumprir com suas funções necessárias, práticas e precisas.
Primeiro passo, tomar um banho pra tentar tirar de seu corpo a preguiça, a indisposição e todo o resto de vestígios deixados pelo sono, pelos sonhos... Sonhos... durante o banho imaginava todos eles escorrendo pelo ralo, o ralo da razão, o ralo da incerteza, o ralo da indecisão.
Na toalha que se secava ficava um pouco mais daquilo que depois seria lavado, estendido e depois de seco guardado em seu guarda roupas um pouco desarrumado.
Saiu do banheiro, os pés ainda úmidos, sentou em sua cama e lembrou que mal começava seu dia e já tinha que tomar uma decisão importante, qual seria a fantasia de hoje, qual figurino cobriria aquele corpo. Decidiu, trocou-se, voltou ao banheiro e escovou os dentes, em seguida modelou seu cabelo de tal forma que agradasse a quem o olhasse...enfim olhou-se no espelho...e o que via? Um menino, um homem, uma criança, um velho, um amigo, um ator... uma máscara... agora pronta pra sair e viver alguns dos muitos personagens.
Tinha pressa em sair, pressa em pegar seu ônibus, pressa em chegar a algum lugar que por muitas vezes não sabia onde.
Tudo passava depressa, os ponteiros do relógio pareciam estar contra ele, e entre muitos bom dias, boa tardes, estou bem e você... entre beijos e abraços, aplausos e demonstrações de carinho e amor se deu conta que era hora de voltar para o esconderijo.
No caminho tentava refazer o seu dia, mas tudo passou tão rápido que nada fazia sentido, só queria chegar, só queria tirar todo aquele peso que não estava só na mochila...o que deixava e o que levava daquele dia?
Segunda, terça, quarta, quinta, sexta, e já era sábado e depois domingo, não entendia porque os dias eram contados assim...a tecnologia o aproximava mais das pessoas, e isso só crescia, mensagens, elogios, mais amor e carinho, talvez um pouco de interesse, desinteresse também...era muita gente, muitos nomes, muitos rostos, muitas frases, muita coisa acontecendo.
Responsabilidade... essa palavra pesava demais quando se tratava de missão... Ele agora chegou, foi direto ao espelho e se olhou... as marcas daqueles dias derretiam a máscara posta pela manhã, despiu-se, entrou novamente debaixo da água... não era o corpo que lavava, e sim a alma, a alma nua e pura, impura, suja, fadada...
Antes de deitar-se lembrou que não respondeu a algumas pessoas, precisava cumprir com isso pra que elas se sentissem bem, era muita gente...onde isso iria acabar?
Algo o sufocava, uma alegria e ao mesmo tempo uma agonia, uma tristeza... resolveu deitar-se em seu quarto escuro... não fechava os olhos, ouvia o barulho vindo de fora e lembrou que estavam todos lá, a espera de uma nova foto, um novo vídeo, uma nova frase, uma novidade... E se ele não tivesse nada disso no dia seguinte? Não consta em seus documentos de nascimento algum parágrafo que dite essas regras, então porque isso virou obrigação?
Agora era tarde pra voltar atrás, e sabia que dali a algumas horas um novo dia começaria, e ele ,após vestir mais uma de suas máscaras guardadas a sete chaves, interpretaria com primor mais um de seus personagens, qual? Não sabia....
Era muita gente esperando ansiosamente as luzes se acender e ele aparecer, mas lembrou que estava deitado, olhando para nada em seu quarto escuro...parecia que estava tudo em silencio do lado de fora...enfim entendeu que estando no fóco ou na coxia escura, estava sempre ...sozinho...

Inspirado na música Esconderijo de Sandy Leah

quinta-feira, 1 de setembro de 2011

A Programação do Dia


Letras, números, lados e ruas, informações nocivas à sua existência. A placa de pare e a vontade de se jogar ao caos dos carros passando.
Diálogos estridentes e os nervos entre os dentes, os sussurros e os cochichos daqueles que passam, e aqueles que passam nem percebe que sua cabeça não pára de crescer. O Lixo de seu inferno é o que alimenta esse crescimento, e ele tão cego nem nota. A pressa com que conduz o dia não o leva ao destino que ele mesmo nem lembra.
Diante dele pessoas, passadas, papéis, texto em forma de monstros, monstros em forma de gente e gente de forma abstrata “e onde andam seus sorrisos de ocasião? Sorrisos são feitos para serem ostentados.”
Sua cabeça transmuta e ele nem sente, suas pernas só andam e ele nem chega, ao final do dia o banho não refresca, evapora com o calor de sua imensa cabeça e ele não dorme.
Vamos lá!
Mais um dia e a engenhosa pressa lhe toma pela mão e ele nem percebe, afinal onde estará sua vida que ninguém vê?
Os diálogos são os mesmos, os carros por vezes alteram, e as pessoas insistem nos gritos, sussurros e preces
Na esquina mais próxima, dentro da tua apatia, ainda cabe espaço, para o interesse mecânico.
E então de repente sua existência se faz conhecida, mais também pudera né, em meio a explosão de sua cabeça ninguém se espantar, tempo esgotado.

Inspirado na música de O Teatro Mágico

terça-feira, 26 de julho de 2011

Dom Casmurro

           Tinha o envelope em mãos, mas hesitava, temia violar meu estado cômodo de convicção, abri-lo. Tremia. Há duas semanas levara o menino, escondido, a um laboratório pra colher o sangue que eu tinha certeza: não era meu. Aqueles olhos claros de Ezequiel nunca me enganaram, era realmente a cara de Escobar, sem pôr nem tirar, o exame de DNA que tinha em minhas mãos era apenas pra confirmar. Comprovar o que eu já sabia.
            Com o envelope em mãos, trancado em meu escritório e com o veneno infalível no bolso, um calibre 38 comprado numa esquina, eu tremia num misto de angústia e curiosidade. O café exalava seu aroma no vapor vindo da xícara e resolvi sentar enquanto tremia, com o envelope lacrado em mãos, tão facilmente violável. Mas hesitei mais uma vez e repousei o papel na mesa e trouxe a xícara pra perto de mim. Mirei no reflexo fusco aquele que fora apelidado de casmurro por um rapaz no trem e a alcunha pegou; egresso de um seminário torto, promessa de católico que acabou por não se concretizar. Antes tivesse se concretizado e eu não teria o infortúnio de me casar com Capitu e conhecer a força das ondas da ressaca dos seus olhos de cigana oblíqua e dissimulada. Confundia-me nas metáforas.
            Como não pude perceber? Tudo estava tão claro naquela hora. E fizeram tudo debaixo de meu nariz. Como pude ser tão ingênuo? José Dias soubesse, recorreria à Bíblia e soltaria o aforismo: “Maldito o homem que confia no homem.” Imagine, caro leitor, o escândalo ficassem sabendo que a criança era do falecido... Mas ninguém deveria saber, exceto a adúltera, que lhe trataria de escrever um bilhete. Peguei o envelope novamente e iria abri-lo pra acabar de vez com aquele tormento. Fiz o tal exame pra quê, afinal? Pra não restar nenhuma dúvida. Mas eu não a tinha. Quem possuía dúvidas e fazia questão de me jogá-las na cara a toda hora era a prudência... Meu velho senso de justiça, minha herança cristã. Pois deixei o exame de lado, peguei o bloco, a caneta e comecei. Tinha tempo, era domingo, acordariam tarde. Desta vez, em particular, com um susto.
            O conteúdo do bilhete era curto, objetivo. O remorso seria o pior castigo que podia dar a ela. Eu que cumprira a promessa e fora fiel  todo o tempo... Não deixaria a opção pra que ela se arrependesse de seus pecados e pedisse misericórdia, nem que fosse de joelhos. Sempre fora um marido exemplar e acreditava que este caso com Escobar até pudesse ter sido coisa impensada, um impulso desmedido e corrigido, pois desde que começara a suspeitar passei a policiá-la e não descobri outras aventuras. Mas mesmo tendo visto que se arrependera, não lhe daria o perdão e me mataria, manchando o carpete claro e com cheiro de lavanda. Tomei um gole de café. E outro. Esvaziei a xícara e a caixa de balas e mesmo sabendo que apenas uma resolveria, carreguei o cartucho. Era chegado o momento. Peguei o envelope, porém de tão cego, creio que nem ao menos conseguisse ler sua sentença.
            Transtornado, minhas mãos tremiam e enrugavam o papel de tão molhadas de suor. Suor gelado. Só de pensar que as mãos de Escobar correram a pele da minha mulher, sentia uma ira insana invadir meu sangue e me tirar o juízo. Logo aquele safado que sempre se mostrara tão honesto e virtuoso comigo, amigo de longa data, meu melhor amigo. Eu estava possuído por um enjoo  desmedido, por uma ânsia de vômito, azedo na boca da traição. Eu estava chorando feito menino, de coração partido, descrente da vida, tomado de ciúme, contorcido de dor, sem mais discernimento, de revólver na mão. E lembrei-me da vez que ficara com a pulga atrás da orelha com a viúva Sancha, visto que ainda não era, em que trocamos um aperto de mãos mais prolongado e estranho. Eu tinha que admitir: se ela topasse, eu iria, sem hesitar já que o mundo é dos espertos, não é isso, leitor, ansioso em saber o conteúdo do envelope? Escobar era menos culpado que Capitu. Ela permitira. Contudo, eu me afogava em lágrimas e não tinha forças pra rasgar o envelope, amassado entre as mãos suadas e frias, que também seguravam, trêmulas, a arma engatilhada. “Os sonhos do acordado são como os outros sonhos, tecem-se pelo desenho das nossas inclinações e das nossas recordações.” Os pesadelos também.
            Por que me traíste, Capitu? Por que dessa traição nascera aquela criatura? Estava fora de mim, queimando no inferno dos extremos das emoções, dopado de ciúme. E quase instintivamente, quando ela entrou sem bater e me chamou : “Bentinho...” Saiu apenas o bent, o inho ficou atravessado junto à bala que disparei contra seu peito.
            Desde menino fui muito de me pegar fora de tempo e espaço, perdido nos labirintos de minha cabeça, e voltando do lapso, percebi a tragédia. Os olhos de ressaca miravam nos meus atônitos, sem nada entender. Os olhos de ressaca eram agora de uma maré alta, transbordada, escorrendo pela face de dor. Fui acudi-la, tarde demais: Capitu já não queimava naquele corpo lânguido de morte, entre meus braços.
Em instantes, Ezequiel apareceu horrorizado, saiu correndo de volta e deve ter  chamado um vizinho que por sua vez chamou a polícia, pois quando as luzes das viaturas resplandeceram refletindo na parede, comecei a voltar a mim. Alguma instrução do policial pra que eu me rendesse vinha de um megafone distante, ainda não podia ouvir. Foi aí que me dei conta do envelope, caído perto de nós, ainda fechado. E desesperado, puxei-o enquanto depositava o corpo dela, já quase gelado no chão. Desta vez não hesitei, rasguei-o com precisão e finalmente li seu conteúdo, perplexo, e ainda mais dilacerado: Ezequiel, sim, não era meu.


Inspirado no romance de Machado de Assis.

terça-feira, 5 de julho de 2011

Cuida de Mim

Talvez fosse mentira tudo que ele dizia, mas era a única forma de se falar a verdade. Lembrou que fazia isso pra tentar ser maior do que era, ser inteiro, ser completo quem sabe.
Muitas vezes não precisava dizer nada, o seu silêncio falava por si só, e ele só queria um abrigo, confortável, seguro, sem brigas, sem mágoas, sem lágrimas.
Parecia que nada o satisfazia e quando essa angústia apertava o peito ele sentia medo, solidão... será que não fazia parte daquilo tudo? Tanto faz...
Por mais dúvidas que tivesse ele buscava algo, mas o que? Como poderia ser indeciso e ao mesmo tempo objetivo? Como ser objetivo quando o destino parece nebuloso?
Sentia mais pena dele mesmo do que de qualquer outra coisa, mas isso era permitido somente à ele sentir, porque no fim do dia juntava tudo e criava grandes asas, e voava, pra longe, pra bem alto, pra sempre... a noite ninguém o via, a noite tudo parecia igual, ainda mais lá de cima.
Toda vez que voava se transformava em qualquer coisa, podia ser tom, sabor e som... quando estava frio era calor e pensava as vezes que podia ser o clarão na vida de alguém, por fim era só escuridão, enquanto todos dormiam.
Queria muito mais, queria a paz que um dia alguém te ofereceu... não esquecia dela e isso o perturbava.
Pousaria em terra firme toda noite se ela o fizesse também, mas isso não acontecia e ele continuava lá em cima, olhando a todos, enquanto ninguém o via.
E na tentativa de buscar quem ele era talvez fosse mentira tudo que dizia, mas era a única forma de clamar..cuida de mim?

Inspirado na musica de O Teatro Mágico.

segunda-feira, 27 de junho de 2011

Quase Nada

          Estação da Luz. Integração entre trem e metrô. Eu, sentado há umas três estações. Faltam ainda cinco até o destino final. Minha casa! Não vejo a hora de tomar um banho quente e me livrar de todas as aporrinhações desse dia que quero esquecer. Sem emprego, sem destino. Será que meu lugar é mesmo essa metrópole? A capital paulista hoje quer me engolir, entre choros e lamentações. A porta se abre. Sei lá quantos entram e quantos saem. Nem quero saber o fluxo diário de passageiros. Bando de idiotas caçando ilusões. Assim como eu, muitos abandonam sua cidade, seu estado, sua origem. Fazer o que aqui? Nessa selva de concreto onde governam homens sem coração. Sem educação! Alguém pisa no meu pé, na ânsia de conseguir um lugar para sentar. Poxa, mas é sempre esse aperto, esses empurrões. Não, nem quero reclamar. Quem senta do meu lado é uma menina linda. Roupa social. Do canto do olho, só vejo a calça e o sapato, ambos pretos, talvez algum uniforme. E o cheiro, ah o cheiro. O encanto no ar me confunde e me desperta. Tenho que olhar!
_Quente hoje, não?
         Quente, como quente? Um dos dias mais frios em São Paulo e é só isso que consigo falar? De um calor que existe somente dentro de mim. Depois que ela entrou nesse vagão, tenho mais vida, mais fúria. Quero conhecê-la, saber de onde veio, para onde vai!!!
_Licença, por favor!
        E assim, ela já se foi. O encontro durou duas estações. Dela, não sei nada. Nem nome, nem endereço. Nem mesmo sei o que essas duas estações significam. Um encontro, um atalho ou um desvio? Em que parte nossos caminhos se cruzam? Por quê? Vou embora sem respostas, não sei nada. Quase nada!
        Só sei que nesse dia claro e frio, eu mudei. A presença dela irradiou meu ser, outrora decepcionado. Um ser faminto que hoje recebeu um prato cheio de comida. Mais vida e mais beleza ao sair desse vagão...

Inspirado na música de Zeca Baleiro e Alice Ruiz

terça-feira, 21 de junho de 2011

Natália

          E agora está tudo cinza, e que ironia, a pauta de hoje são as cinzas do Vulcão chileno, que invade o Uruguai , a Argentina, o Brasil, que invade minha vida. Você levou as cores de seus quadros, as cores do meu quarto, as cores dos meus dias, e tudo que sinto é saudade. Mas vamos falar de pesticidas, de tragédias radioativas. Aqui sentado nessa solidão cortante não consigo escrever nenhuma palavra para minha matéria. A solidão que sempre me foi uma excelente companhia nas horas produtivas de trabalho, agora imposta de encontro com o desejo de sentir sua pele e poder cantar seu nome, me dói como a falta de esperança. Quando a tristeza é sempre o ponto de partida, quando tudo é solidão é preciso acreditar num novo dia, você me diria, e eu responderia com a voz cheia: mágoa, ódio ou rancor, que ter esperança é hipocrisia, a felicidade é uma mentira, e será mesmo que a mentira é a salvação do mundo?
          Assumo meus erros, embora fossem cometidos todos iguais, talvez com menos frieza, menos rigor, os erros cometidos com amor são mais facilmente perdoados, notamos pelos crimes passionais, desculpe-me pela minha falta de passionalidade, mas eu, tão conhecedor dos males alheios não sou capaz de conhecer minha própria história. Foram a praticidade, frieza, e autocontrole que conquistaram a menina de nome cantado, de olhos tão negros que escondiam toda a beleza de sua arte. Mas conviver com o mistério foi nossa sentença, não conseguimos, decifrarmos e fomos devorados pela ânsia da vaidade de possuirmos, esse é meu declínio, e você, menina do nome lírico, minha doce Natália, tem o mundo em suas abstrações, possui agora todas as cores da minha vida, e minha razão e coerência invejam sua fantasia de que antes nunca pude falar.
          Eu não te dei nada além do meu silêncio, a ética da minha tola profissão, ou quem sabe o medo de amar, não me fizeram capaz de adorá-la e você não foi corrompida, não bebeu desse sangue imundo. E agora é tanta confusão que não consigo pensar, o vulcão vai ficar pra depois, talvez eu me aposente, talvez eu adormeça, talvez eu morra ou vire músico e ai então, quem sabe um dia eu escreva uma canção pra você.

Inspirado na música de Renato Russo.

segunda-feira, 6 de junho de 2011

Último Romance

  Eu encontrei-a quando já não queria mais encontrar o meu amor, mas isto foi depois. Encontrei-a muito antes e nos encontramos algumas vezes após esta primeira vez que já não era a primeira, pois éramos colegas de sala. Por ironia, nem havíamos nos percebido até aquela noite, em sua casa, naquela festa estranha, a primeira de sua república. Em meio ao tumulto de gente bêbada e música alta, vi só nós dois, olhando a noite, debruçados na janela, falando de cinema, música, achando gostos comuns. Também estava alcoolizado e mesmo namorado de outra, a quem eu não amava, tentei a sorte em lhe beijar, nem sabendo ao menos que ela já estava acompanhada. Esta foi a primeira vez. Nas que se seguiram, trocamos beijos, carícias e bilhetes, compartilhamos um silêncio mútuo, nenhum dos dois ousava ultrapassar o limite demarcado da segurança. Foram vezes de encontros casuais, que migraram pra conversas honestas, em que o tema principal era justamente o medo do tal amor, esse andarilho vadio e ardiloso. Há de se haver uma vez para a narrativa das histórias.
                Mas disse que eu encontrei-a quando já não queria mais procurar o meu amor e aí muito já havia passado desde então: outonos e primaveras inteiras, tantas tempestades assistimos cair lá fora, e quanto azul do céu merecíamos rever. Ela, uma jovem idosa, com a sabedoria prematura dos abençoados ou amaldiçoados com a inteligência. Eu, um idoso jovem, cheio de manias, brados de mau humor e reclamações batidas. Éramos o inusitado, ríamos dos outros, ríamos de nós, ríamos das nossas desilusões. Éramos dois jovens românticos e irremediáveis naqueles dias, dispostos a tudo por uma nova ilusão, bela, efêmera ou não, inócua ou o contrário, pois somos grandes de espírito. Não tínhamos medo da frustração. Eu já não queria mais procurar o meu amor, mas no fundo, na companhia dela, nas nossas horas desmedidas de longas conversas, embaladas por alguma inspiração infinita e misteriosa, eu já não precisava mais. Mas eu não suspeitava. Os amigos iam saindo e eu ia sobrando e ficando e voltando e ficando. Era apenas amizade. Eu encontrei-a quando estava distraído, observando-a, imerso em mim mesmo, temendo admitir que houvesse sucumbido novamente. Encontrei-a e duvidei.  O quanto levou foi pra eu merecer.
                Confesso que não sabia. Entender toda aquela mudança foi complexo e levou o tempo que precisou. Era muito clichê, eu costumava presumir. Nada foi estabelecido, imposto ou planejado. Fluía leve, sem rótulos nem expectadores, expectativas. Quando estávamos mergulhados em nossas dores individuais, revezávamos o papel de quem velava o sono de quem, quem enxugava o choro de quem. Éramos dois jovens poetas boêmios, hedonistas e incontestáveis. As metáforas desdobram, mas acabam por confundir. Ela me disse o que era o sufoco e eu a segui, com a premissa de dividirmos o fardo. Ninguém ousou dizer que era tarde demais, que era mesmo tão diferente assim.  Aqueles que questionavam já diziam saber o que eu e ela demoramos a perceber.
                O tempo. Ah!, o tempo... Ele se esvai sem se perceber.  Sempre que olho pra trás, sinto a saudade de tanto tempo juntos, deixado pelo caminho, lembranças boas que se acumulam das vezes em que estivemos entre amigos, que rimos de doer, as vezes em que enfiamos a casa na sacola e rumamos pra mais uma aventura, juntos, sempre juntos. Pra nós, simplesmente sair de casa já é se aventurar, pois vejo que seus olhos ainda não se cansaram, não perderam a intensidade do brilho quando cruzam com os meus, ou quando se deparam com o mundo. Seus olhos não passam a segurança de quem pensa saber tudo, seus olhos têm fome de mundo. Ela me mostrou o sossego e eu lhe mostrei alguém a fim de acompanhá-la aonde ela quisesse ir, sem pressa. E só de vê-la assim, ao meu lado, as mãos dadas, saindo numa sempre instigante caminhada, eu penso em trocar tudo o que eu tenho pra poder levá-la a qualquer lugar que ela quisesse ir. E que pena eu não ter muito. Se o tempo, esse ferrenho ditador levá-la sem mim, eu sigo o seu encalço, pego nem se for uma carona e a encontro no caminho desta mesma hora.

Inspirado na música de Rodrigo Amarante.

segunda-feira, 30 de maio de 2011

Um Par

          Ela o observa chegar, mais uma vez. Prostrada, finge que dorme – o que não faria muita diferença. Há meses tem sido assim. Nem se cumprimentam. Aliás, a relação nunca fora assim, tão boa. Eles eram diferentes. Havia amor, sim.
          Houvera bem antes o amor pelo pai. Esse já se fora. Mas os filhos, esses não se vão. Desses, não há como separar-se. Quando ele ainda era criança, era diferente. Embora não ousasse disfarçar sua predileção pelo pai, a relação se sustentava em pilares ocultos de troca sem garantia. Afinal, mãe é feita para doar...
        Mas ele cresceu, e após o divórcio, resolveu jogar limpo. Por para fora aquilo que o revoltava: Era culpa dela.
         Ele entra e vai direto para o quarto. Comportamento previsível. Às vezes surpreende e chega acompanhado. A namorada há tempos frequenta a casa e também não dirige a palavra a ninguém. Ela não gosta disso, e também não disfarça. Apesar dos recados, o que resta é somente um sofrimento calado. Aquelas lágrimas contidas pelo travesseiro.
       Mas ela está acostumada a sofrer. Lembra-se das brigas do passado, em que era sempre tantos alvos.
       Ele não se demora no quarto. Veio pegar não se sabe o que. Estaria ele envolvido novamente? Ele ganhava dinheiro fácil. E muito, a ponto de dar presentes. Ela já havia recebido. Ela sempre desconfiava, e ele respondia com chantagens. Menino mimado, ele aproveitava disso. Pedia o que via na TV. E sempre queria mais. Ele não tinha limites, e a culpada era ela.
      Com os olhos quase cerrados, ela o viu sair, de roupa trocada. Como tantas vezes, colocou a camisa do time. O mesmo time do pai, de quem tinha também o mesmo nome.
      Agora ele nunca avisa onde é o jogo de domingo, mas pelo menos não se demora. São outros tempos, em que o silêncio substituiu as brigas. Ela se questiona sobre o que havia deixado faltar. E quando. Em que parte da história. Foi quando o divórcio aconteceu. A vedade é que eles sempre estiveram ligados ao casamento. Talvez ele só tivesse acontecido porque ele já existia. Nunca houvera um par, e a culpa era dela.
Inspirado na música de Rodrigo Amarante.

quarta-feira, 25 de maio de 2011

A maçã

     “Se eu te amo e tu me amas, um amor a dois profana, o amor de todos os mortais...”

     Parecia simples pra ela pensar assim, porque desde que cresceu sonhou com a chegada do seu príncipe encantado, aquele que seria apenas dela... apenas dela?
     Quando cresceu descobriu que os príncipes encantados não existem, o que existe são apenas mortais, são maçãs, que no fundo são todas iguais, assim como ela, em busca de algo maior, em busca de um amor verdadeiro, em busca do “pra sempre”... mas pra sempre parecia longe demais.
     A beleza dele era incomparável, algo que jamais havia visto, e quando trocaram as primeiras palavras a paixão foi a primeira vista... a paixão.
     Ela sabia que era muito cobiçado, sabia que bastava chamar que outra logo aparecia, mas resolveu arriscar, mesmo sem saber lidar muito bem com o até então novo sentimento de ... ciúmes??
     O que seria o ciúmes? É correto prender alguém como um santo no altar, em um mundo tão cheio de possibilidades?
     Sua família era contra esse romance, até porque o príncipe parecia maduro demais pra mocinha, que juntos resolveram cuidar de suas próprias vidas, e sem ninguém saber fugiram, pra longe e pra sempre...pra sempre...
     Os anos se passaram, ela estava cada vez mais ligada nesse amor que parecia só crescer, ela já sabia que ele era o escolhido pra morar junto dela, e ela queria tudo, queria o possuir de todas as maneiras, de todas as formas, queria tua alma, teu corpo, queria ele completo, mas algo ali dentro dizia que isso não era tão simples assim, porque além dos dois existia muita gente do lado de fora daquilo que ela construiu... triste pensar nisso, ou seria também a sua oportunidade de saber quem são essas pessoas?
     Aquilo ainda era muito confuso pra ela, tudo se bagunçava em sua cabeça... esperava por horas ele chegar de madrugada dizendo que estava com os amigos, procurava em seus bolsos algo que pudesse o condenar pra sempre, ela queria encontrar algum motivo que justificasse tudo que sentia... mas não encontrava e aquilo estava a corroendo. O fato de estar longe de sua família e ninguém poder saber desse romance piorava a situação.
     O tempo parecia passar rápido demais, parecia que ontem eles haviam trocado o primeiro olá, parecia que semana passada ela havia mudado toda a sua vida pra morar com alguém que tinha certeza ser só dela.
Sim, ela estava enlouquecendo e não se deu conta disso, ela continuava buscando provas, procurando razões, e resolveu ser mais direta...
     - Você me trairia?
     - Se esse amor ficar entre nós dois, vai ser tão pobre amor, vai se gastar...
     Ela agora sabia o que procurava, revirou as gavetas, encontrou o que queria e tudo se silenciou ao som de dois tiros...
     Ela o libertou, talvez assim o amor durasse pra sempre... e vendo ele deitado no chão da sala se sentiu satisfeita em saber que não mais o privaria do que mais venerava, a beleza de deitar...
     Alguns anos depois, a princesa parecia viver a verdadeira fábula, estava presa em sua torre, a espera de algo que pudesse a resgatar, não dali, mas da vida...
     Um dia foi surpreendida por uma visita de um familiar, que depois de muito procurar a encontrou, ele trazia algo pra ela... um bilhete que tinha sido encontrado nas coisas dele... sem entender muito ela abriu aquele papel já bem amassado e com os olhos cheios de lágrimas viu que era sim a sua letra... e o bilhete dizia palavras que talvez ela nunca quisesse ouvir:

     “Quer se casar comigo? Agora esse amor já não mais ficará entre nós dois, vai ser tão rico amor... vai aumentar!!”

Inspirado na música de Raul Seixas e Paulo Coelho.




quarta-feira, 4 de maio de 2011

Mérito e o Monstro

"Pra dilatarmos a alma temos que nos desfazer pra nos tornarmos imortais a gente tem que aprender a morrer com tudo aquilo que fomos e tudo aquilo que somos nós"
Um suicídio a cada dia, assim a vida segue de maneira automática, pessoas vivem enquanto eu morro pra existir, mato-me para crescer e morro sem errar.
Hoje é simples...
Basta que eu morra, pra mais tarde então viver.
Tanta luz, tanta estrada, tantas voltas e tanta paz.
Hoje é simples, e agora, é viagem.Tudo em volta é real.
Mártires dessa história, hipotéticos como nós. Uma troca tão valente, medidas tão exatas, e o vencedor então sou eu.
Te entrego minha vida, tenho em troca o que sou.
Escolha da razão, deixando de ser vão pra mais tarde não saber.
Entre sonhos, paradoxos, entre medos os próprios sonhos, hoje é simples, basta apenas acordar.


Inspirado na música de Fernando Anitelli.

segunda-feira, 18 de abril de 2011

Paciência

     Estou tão fora de mim, não estou aqui, presente neste exato momento. Por onde andará minha alma, senão se distraindo, inventando, idealizando, sonhando com dias de mais sol? Mesmo quando preciso que ela retorne a este corpo cansado, amassado e requentado, ela some, sai dançando por aí. Talvez ela não queira dividir espaço com tantos amontoados de preocupações, rugas prematuras neste adormecido interior. Talvez ela não queira continuar sendo ignorada na correria desse cotidiano, ser mera coadjuvante na relação de prioridades, sempre tão imediatas. Mas confesso que queria recusar, fazer hora, mas a vida não para.
    Nessa cidade de doze milhões de histórias, desses agrupados nesses aglomerados suspensos, engarrafados nesse trânsito caótico e vibrante, organizados desorganizadamente à espera de seu destino, anônimos e irrelevantes uns aos outros, vejo um convívio de realidades tão distintas, realidades paralelas, nunca se cruzando por aí por um acaso. Não consigo mirar cada rosto dessa multidão parada no cruzamento esperando o sinal apontar que podem passar em relativa segurança. Não consigo apontar até onde vai essa fila de carros, essa procissão de gente. Talvez eu possa me desculpar pela estupefaciência, já que de onde eu venho chamam de interior e a gente consegue reconhecer um ou outro na rua. Aqui todos são desconhecidos, figurantes uns dos outros, descartando uma aproximação por precaução, por distração. O tempo acelera, pede pressa, enquanto as sirenes das ambulâncias sibilam e pedem passagem.
     Segurando-me no molejo desse ônibus lotado, reparo alguns desconhecidos tão familiares, até mesmo íntimos só no jeito de olhar. Alguns cochilam, outros dormem mesmo, alguns aproveitam o tempo e leem, outros ouvem algo em seus dispositivos portáteis, e alguns como eu somente esperam. Chego até a pensar que a felicidade seja mesmo aqueles instantes de distração, em que não se pensa em nada, nem se age, somente se espera, porque foge do controle. Penso que ignorância e alienação são sabotadores disfarçados de paciência. A gente espera do mundo e o mundo espera de nós um pouco mais de paciência. Consigo enxergar um certo ar de frustração nesses homens engravatados, fumando seus cigarros, em frente aos prédios onde trabalham, amassando-os depois com seus sapatos caros. Sinto que mesmo sabendo do câncer, milhões se permitem um instante de distensão, dão sua escapada. Cada qual ao seu modo torra seu tempo com o mais convinhável a si mesmo. Consigo enxergar os pés sujos desses moradores de rua. Consigo enxergar um monte de coisas, mas nada me vem, nada me retém, dura o tempo exato que tinha que durar.
     Eu posso estar louco, aliás, todos estão. Mas onde queremos chegar? Onde eu quero chegar? Enquanto a loucura finge que tudo isso é normal, estamos onde não queríamos estar, trancados nessas seções, esperando nessas estações e eu finjo ter paciência pra não enlouquecer. Talvez a felicidade não seja algo tão complicado, talvez não queiramos admitir que seja tão simples assim só pra prosseguir jogando, arranjar mais fichas pra apostar, ser mais um insatisfeito, querendo sempre mais. Talvez a felicidade seja eu e ela e ninguém mais. Pra que se precisa de mais alguém quando se tem doze milhões de figurantes ilustrando um sonho real? Talvez não valha a pena pensar demais. Há que se deixar fluir. Até mesmo no caos há uma certa harmonia, irretocável.

Inspirado na música de Lenine e Dudu Falcão.

quinta-feira, 14 de abril de 2011

All Star

Estranho seria se o sal dessas lágrimas viesse doce agora. Não sinto mais esse gosto... O gosto doce de um chocolate dividido no rápido intervalo. O gosto do mais saboroso beijo, conquistado da forma mais contrária. De lábios novos, da pessoa mais doce...
           Explodo-me em lágrimas. Lágrimas guardadas, acumuladas em um coração já adulto que sofre por teimar em brincar. Queria continuar aquela conversa de ontem, não podia aceitar o fim. Não sabia se devia, mas quando dei por mim, já estava no elevador.
           Você sorriu, embora assustado. Eu entrei e logo vi, em cima da estante: dois livros e minha gravata. Estariam essas coisas já separadas para que eu viesse buscá-las? Doi a certeza, doem também as dúvidas. Mas ainda mais estranho seria poder esquecer tudo isso, ou melhor, não ter nem começado essa história, cujo fim já havia sido alertado a mim. Já pudera prever esse fim. Esse momento em que, de tudo, eu viraria mais o velho que o amigo. Não acredito em amizade sem protecionismo. Não poderia explicar as aulas particulares, privilégios de quem?
           Eu, vilão de minha própria ética, ainda não contestada. Não é só mais uma visita. Não vamos ver mapas, nem vou te contar de terras, de descobertas. Hoje, não avisto nada em seu olhar. Em silêncio, pego minhas coisas. Você hoje poupa seu vocabulário tão cheio de gírias.  Saio ainda em silêncio, você se despede com um abraço.
           Esse é o fim da história, da minha mais terrível contradição. Eu, sempre tão dono de mim, hoje choro não poder viver meu mais desejado erro. Nada combina entre nós. Nossa roupa, nossa idade, nossos gostos. Você arrancava os tênis, e eu os sapatos.
           Eu precisava ter visto, entrado e sentido pela última vez teu corpo tão próximo ao meu. E agora, dentro do carro, a única coisa que me falta é sair desse bairro, que hoje deve rir satisfeito por minha partida.
           Sinto-me um estranho ao olhar o retrovisor. Agora sei que sou estranho também para você. Minhas lágrimas, salgadas e incontidas só mostram-me a mais certa afirmação: para o fim da história: ainda mais estranho seria se um professor nunca tivesse se apaixonado por um aluno.

Inspirado na música de Nando Reis.

segunda-feira, 11 de abril de 2011

Venha

    Parecia mais um dia comum, acordar, tomar banho, vestir o uniforme, tomar café da manhã pegar a bicicleta e pedalar até a loja onde trabalhava.
     Entre telefonemas, cobranças, contagem de notas e atendimento a alguns clientes, um em especial chamou atenção...de alguma forma , digamos, diferente. Ele estava acompanhado de duas amigas, e entre um comentário e outro desviava seu olhar em direção a ele que também olhava sem entender o que aquilo estava significando.
     Uma grande confusão se fez em sua cabeça que logo foi substituída pelo aviso: hora do almoço.
     Durante a refeição aquele olhar persistia em lhe olhar, mesmo não estando presente parecia que ainda estava ali, bem em frente, em todos os lugares.
     Ao voltar do almoço um recado em sua mesa: LIGAR PARA... e um numero desconhecido...perguntou para alguns colegas de trabalho que disseram se tratar de um cliente que ligou pra resolver algo, talvez sobre nota fiscal, ou sobre garantia dos produtos.
     Ligou..chamou 3 vezes e uma voz do outro lado disse: alô.
     Ele sabia de quem era a voz, mas fingiu não saber.
     - Resolvi ligar pra perguntar se não quer fazer algo depois do trabalho, poderíamos jantar juntos.
     - Sim. Ele respondeu de imediato, sem saber se a resposta havia sido por vontade ou por desconcerto. Ele sabia que era vontade.
     Encontraram em um restaurante no centro da cidade, a situação era um pouco embaraçosa mas atraente...o quem tinha ali? Qual era o objetivo daquele ritual inesperado?
     Trabalho, família, musica, teatro, cinema, baladas entre outros muitos assuntos rechearam aquele jantar, e entre um gole e outro de vinho tinto, aquele olhar que permaneceu nele o dia todo se fazia presente.... agora fisicamente.
     - Podemos ir até a minha casa e ouvir uma musica e conversar mais um pouco...
     - Pode ser... foi o mesmo sim, só que desta vez com um receio maior... não sabia quem era aquela pessoa, apesar de tantas informações que poderiam não coincidir, e partiram.
     Uma casa azul clara, grande, com um cheiro tão agradável que parecia casa de avó. Ao lado da cama um casal de velhinhos feitos de pano, tão perfeitos que pareciam vigiar aquele ambiente.
     Próximo a TV um porta CDs em forma de guitarra e muitos DVDs de filmes e alguns musicais. O assunto parecia nunca cessar, ele nunca havia conhecido alguém assim, tão cheio de histórias e um humor incomparável.
     Sentaram um ao lado do outro, uma musica agradável de fundo preenchia o ambiente, o vinho era bem melhor do que o servido no restaurante, o que mostrava um bom gosto por bebidas mais sofisticadas.
De repente uma mão em sua mão fez sua espinha se contrair e seu corpo estremecer por completo, e nas tentativas de mostrar certa segurança, o seu nervosismo se tornava mais evidente.
     A mão agora passeava pelo seu rosto, ainda de cabeça baixa com medo de encarar aquele olhar que fez parte de forma tão intensa do seu dia. Silêncio.
     Nem a musica parecia presente ali mais...ele olhou... e o olhar que vinha de encontro penetrou em seu corpo como uma navalha, a mão que estava no rosto foi para a nuca, apertando seus cabelos e conduzindo sua boca de encontro a dele.
     Os lábios se encontraram e o seu gosto invadiu sua alma, parecia que já havia provado aquilo algum dia, mas sabia que não. Sentiu sua língua quente encostando na sua e se entregou a ela, assim como quando estamos no mar e sabemos que a onda é inevitável, temos apenas que senti-la contra o corpo, neste caso, a favor do corpo.
     A mão agora já não tinham mais direção, aquele barco sem rumo e sem farol se sentiu em águas calmas, seguro e vendo estrelas... queria mais, queria ser tocado onde gostava, mesmo sem nunca ter sido tocado antes.
     As roupas começaram a se despedir da cena, permitindo apenas aos corpos viverem aquilo...corpos quentes, macios, molhados agora.
     A respiração parecia fazer uma coreografia não ensaiada, bocas, mãos, braços, pernas, peito, tudo se misturava naquele gosto incomparável.
     As palavras deram espaço a outros sons, sons de prazer, sons de êxtase... que droga era aquela que fazia a mente entrar em transe... em transa.
     Mesmo sem nunca ter vivido algo assim ele parecia saber o que fazer, apenas deixando os movimentos voluntários te guiar ...ou seriam involuntários?
     Nada era pecado naquele momento... e aquele olhar daquela manhã despertou nele algo inédito, acordou todos os pontos antes nunca mencionados, pois era só dele... e ele o entregou.
     O orgasmo então se fez presente, parecendo anunciar uma nova era... silêncio...silêncio.
     A respiração foi caindo, assim como as roupas foram voltando a seus lugares, e o trajeto até a porta de saída, a despedida, e sua casa pareceu durar segundos...quando se deu conta estava deitado em sua cama, com dois olhos arregalados no quarto escuro, e mesmo no escuro sentia aquele olhar vigiando seu sono.
Acordou, tomou seu banho, vestiu o uniforme, tomou café da manhã e pedalou até a loja, no caminho ainda em êxtase pela noite anterior tentava lembrar dos detalhes, de repente despertou quase em frente a loja, e viu muitas árvores floridas, era o primeiro dia de primavera... havia ele sonhado tudo aquilo? Não sabia, mas tinha certeza que já não era mais o mesmo.

Inspirado na música de O Despertar da Primavera, montagem de Charles Möeller e Claudio Botelho.

quinta-feira, 31 de março de 2011

Angra dos Reis

Não me importo em atribuir-lhe o peso da culpa, queria poder te expulsar, mas estou diretamente ligado a você e é só questão de tempo para desaparecermos. Agora é o que temos: somente um ao outro, você fez questão que fosse assim. Não pensou que poderíamos precisar de alguém para dar os remédios, ler poesia, contar uma história? Você nos condenou à solidão e agora esperamos as estrelas caírem, sinto saudade de quando éramos apenas um, ou éramos apenas você, meu lado são, alegre e desmedido. Irresponsável, contaminável, foi isso que você foi, queria abraçar o mundo? Pois é, agora fazemos parte desse caráter pandêmico, de certa forma você conseguiu. Seu coração perfeito ainda bate, bate no compasso de uma marcha fúnebre, bate à toa, e isso dói.
Tem dias em que tudo está em paz, e agora é só o calor de nossa febre que queima as infecções plantadas, que queima tudo ao redor, que queima nossa esperança. Tenho medo, olho pro céu e precipito nosso fim, a culpa é toda sua e nunca foi...
Pensou que não haveria perigo brincar nessa usina nuclear, onde o sexo, as drogas e até mesmo sua coragem eram radioatividade pura? Sua imprudência agora mutila todos os descendentes que nunca chegaremos a ter, deixa pra lá, a angra que é dos reis.
Vai ver que não é nada disso, vai ver que eu já nem sei quem sou, noto você partindo e grito a um monstro invisível, me diz, me diz pra onde eu devo fugir. Tarde demais, pode rir agora que estou sozinho e mesmo contrariando os meus desejos, eu sei que é você quem vai voltar, que é você quem vai roubar-me a vida.

Inspirado na música de Renato Russo, Renato Rocha e Marcelo Bonfá.

sexta-feira, 25 de março de 2011

Déjà-vu

          Estava num tédio danado, desses de domingo. Nenhuma verdade a machucaria. Estava alheia àquele contexto sempre tão repetido. Era um tédio danado, mas que já não surpreendia mais. No alto de suas duas dezenas de idade, percebia que já deveria ter tomado algum rumo na vida, como diziam simploriamente, ignorando as variáveis. Viu-se até mesmo uma adolescente crônica, que por certo jamais cresceria e seria decidida, autoconfiante. Todo aquele tédio que até pouco tempo era morto nas suas desandanças, em noites sem fim, noites alucinadas, acumulava-se na rotina de adulta pela qual se encaminhava agora. Mantinha-se indiferente e distante de tudo, como se já tivesse visto o bastante e sentisse prematuramente as dores da idade, já esperadas e toleráveis.
          Fazia algum tempo ela já não se interessava por algo novo, ou se distraía com o que já pressentia conhecer. Sentia-se prostrada num quarto fechado, sem aberturas de portas ou janelas, sem contato com nenhum outro humano em potencial. Era uma visão que lhe surgia, sem hora exata nem lugar, e que a detinha mesmo em meio a tanto flerte, mesmo num lugar de som muito alto e luzes descontroladas, mesmo ao lado de alguém que lhe oferecesse alguma tentativa de distensão. Bastavam apenas alguns minutos de silêncio pra que ela saísse do momento e logo se pegasse de novo sobre aquela cama, dentro daquele quarto lacrado, deitada, tranquila, consumindo-se em preguiça. Muitos se afastaram por seu estar-não-estar, alguns ainda insistiam e outros nem desconfiavam de sua apatia. Talvez fosse apenas charme. Ela se consumia em preguiça pra se desperdiçar naqueles jogos sociais e já não confiava em nada nem mais ninguém. Estava de cara blasé com a vida e esperaria o tempo que fosse pra que um dos lados deixasse um indício de cansaço denunciar a rendição do embate. Estava encarando o inimigo, ou apenas hesitando, medrosa, como aqueles que esperam o outro se mexer pra tomar uma decisão. O difícil era identificar quem ou o quê era o inimigo.
          Da janela do quarto real, ou pelo menos tateável, o mundo estendia-se irregular por sobre o teto das casas e no vertical dos prédios, numa confusão de fios e antenas e pipas presas. O mundo se desenrolava, em tons de cinza, fotografias em preto e branco, silencioso apesar de tantos ruídos. Estava num tédio danado, num dia desses de domingo e apesar do céu tão nublado, aventurou-se em se misturar ao convívio daqueles anônimos que se perdiam pelas ruas, na direção contrária de tentar achar. Eram alguns imundos pelas calçadas cujo sofrimento já não comovia mais que envergonhava quem passasse alinhado. Eram sonhos de consumo nas vitrines, objetos fúteis, livros de auto-ajuda, que não a atraíam. Sonhos predefinidos que se não realizasse e ficasse só na vontade não iriam fazer doer, pois quando se está tanto consigo mesmo, aprende-se a controlar a dor, espera-se que ela passe, sem o subterfúgio de maquinar um discurso de vítima que possa comover alguém.
          Fazia algum tempo não chovia e estava quente. Perdeu a noção do tempo, medida besta. Paranoica, pegou-se várias vezes com aquela estranha sensação de já ter passado por tudo aquilo, alguma vez, quem sabe?, numa vida passada. Mas eram apenas aquelas mesmas ruas que se repetiam abaixo dos seus pés, por onde já passara tantas vezes. Enquanto todos corriam depressa pra se proteger e outros tantos abriam seus guarda-chuvas, ela continuava indiferente, deixando-se molhar, com seu mesmo passo regular e sentindo cada pingo frio, sem medo de parecer uma doida varrida, já que estava tão à parte daquele contexto de política e protocolos. Ela não tinha pressa mesmo.

Inspirado na música de Peu Gomes e Pitty.

quarta-feira, 23 de março de 2011

Por que não eu?

           E mais uma vez, ela cai no sofá. Aquele velho sofá, por que não rasgado, sujo e maltratado? Ela cansou de embriagar-se lentamente em pequenas doses de vinho, tomado na delicada taça. Essa taça desse conjunto com que eu a presenteei hoje, seu aniversário. Era pra ser um jantar encomendado, só pra nós dois. Um bom vinho, um belo conjunto de taças, um jantar e um cartão. Ocasião especial. Hoje eu ia dizer aquelas coisas, que penso há tanto tempo.
            Tá, tudo bem: Um ano e três meses, exatamente. Desde o primeiro dia que eu visitei esse apartamento, e aqui já dormi, depois de um porre em comum, eu já sabia. Era ela, é ela. A doce menina do sorriso de canto, de olhos cor de mel.
             E eu não esqueci nenhuma palavra. Guardo tudo aqui, dentro de mim. A primeira vez que ela me chamou de amor. Nosso abraço, de quase trinta segundos, debaixo de chuva. Como sempre, os dois bêbados. Eu e ela, por que não? Sei de tudo que ela gosta, e do que não gosta também, me privando em tantas vezes para fazê-la feliz. Ah, é tudo que eu quero, e seria tão fácil.
            Tantos momentos, e sei relatar cada um. Tanta coisa que quero dizer, esperando a hora certa... E agora ela insiste em ter somente o travesseiro como companhia. Fui o primeiro a chegar, e certamente não irei embora. Não agora, não até ter a certeza que ela está bem, que acordará. E aí, tudo ficará igual. A coragem de me declarar já foi embora, no mesmo momento em que o vi.
            Estávamos terminando o jantar, ainda saboreando o vinho, e a campainha tocou. Fiquei surpreso, sim. Não sabia que ela esperava alguém. Como a tolice me foi traiçoeira. Era o aniversário dela, como pude pensar que seria o único a querer visitá-la? Como achei que a comemoração seria um simples jantar, encomendado só pra nós dois? Pensamento inútil, vã tolice dos apaixonados, mas... Por que não?
           Não, não mesmo. Ela esperava mais. Naquele momento, chegaram seis pessoas. Colegas do hospital, eu soube mais tarde. Bebidas na mão, presentes eu não pude ver. Não sabia que o jantar viraria uma festa, Não sabia que ele viria. Um rapaz loiro, com uma camisa de uma banda de rock qualquer. Tudo natural, pois ela nunca devia imaginar o que se passa nessa minha cabeça. Mas eu vi o jeito que ele olhava pra ela. E, quando tudo virou uma festa, para a qual não fui exatamente convidado, ele a levou pra sacada. E eu vi o beijo, ou o começo dele. A dor é ainda pior quando não é totalmente imaginada.
             E por que eu? Todos já foram embora, e agora somente eu, com um sentimento que é meu próprio algoz. Não posso culpá-la, ela não sabe. Como poderia saber? Penso que escondo tão bem. Mas a razão teima em resgatar um pouquinho de sanidade. Não, não, não. Ela não poderia saber. Por que não? Ela não me ama. Ela sabe, é isso. Ela sabe e faz aquilo que a convém. Sou um amigo, para quando não se tem nada pra depois.
             Canso-me de olhar, apenas olhar. Contemplar o belo corpo que nada sente. Não por mim. Eu, eu, eu. Sempre estou aqui, será que ela não vê? E agora que sei da verdade? E agora, que a razão finalmente me fez ver que isso não se trata de amor, mesmo que platônico. Essa obsessão que eu teimo em chamar de amor, é o que me cega. Se ela sabe que eu a amo, há tanto tempo, por que não me disse nada? Nem mesmo... um não!!! Por que? Por que não? Por que não consigo despertá-la pra mim? Eu, que sempre estive aqui...
             As perguntas me consomem enquanto fujo de minha pior dúvida. Fugir, ir embora, e quem sabe me libertar dessa prisão sem muros, ou talvez ficar, esperar. Eu tenho que falar, tentar, arriscar...
            Por que não?

Inspirado na música de Leoni, Paula Toller e Herbert Vianna

domingo, 20 de março de 2011

Flor da Pele

          Às vezes ele andava por aí, caminhando com seus próprios passos, sem saber muitas vezes por onde caminhava, ou até mesmo pra onde ia. Questionava-se, e questionava as coisas que o acompanhavam sem mesmo sair do lugar. Por que coisas sempre dependem de outras coisas pra serem alguma coisa?
         A criança, para ser feita, precisa de uma parte do homem e outra da mulher. Precisa também de coisas que a ensinarão a falar, a caminhar, aprender a "ser" alguém. Alguém precisa sempre de alguém, pra se tornar alguém que nem saberá quem. 
         Ele caminhava em um dia frio, e pensava que talvez o frio precisasse dele todo agasalhado pra ser realmente frio, bobagem. E frio só precisa de falta de calor. Será então que o frio não existia? Então é assim, pra que uma coisa exista, ela não precisa de outra, porque às vezes a falta de uma coisa faz com que outra exista.
          A solidão é a falta de alguém do seu lado, mas ele estava tão à flor da pele que não se concentrava nisso, apenas sentia a barriga gelada e a garganta seca, talvez pela falta de resposta pra tanta coisa.
          Ele lembrou do beijo da novela que o fez chorar sem ele saber porque, e percebeu que estava à flor da pele, à espera de um pássaro que viesse beijá-lo. Olhou para uma janela e diminuiu os passos. Havia alguém ali, com o olhar longe, pensou que poderia ser pra ele, isso o faria morrer.
          Seu desejo se confundia com a vontade de algo que ele desconhecia. Mas porque tinha que existir algo? Ele agora sabia para onde ia, queria entrar no velho barco. Estava cansado, não ao ponto de acreditar em alguém, apenas cansado.
         Chegou lá então, e foi logo lendo a placa de destino, não estava escrito nada, muito comum pra um barco sem porto, pra que teria que ter um destino se nem mesmo tinha vela.
          Ficou ali, sentindo o mesmo frio no rosto e se preservando de sentir mais alguma coisa. Olhou para baixo, o barco tão rápido movia a água de forma linda, ela precisava dele pra estar assim.
          Ele sentiu vontade de  conhecer aquilo mais a fundo, então ele se foi, quem sabe voltaria, ou talvez nunca mais.
          Seu suicídio precisava da água pra existir... coisas sempre precisam de coisas.

Inspirado na música de Zeca Baleiro.

domingo, 13 de março de 2011

O nosso amor a gente inventa

Difícil entender alguns sentimentos, é complicado aquilo que você escolhe para dar o nome de amor.  Quantas definições existem para cada ser? Seria mesmo o amor o querer bem cheio de resignações, visando tão somente a felicidade do outro?
Bem, começo a traçar uma linha de raciocínio e essa necessidade de nomear coisas e sentimentos me causa um vazio que também não encontro definição, ela sempre me foi um problema, acho que por isso eu prefiro as reticências e nunca tenha me sentido completo, as coisas perdem forma quando passam por aqui e a simplicidade de algo passa a ser a complexidade do que agora... Também me faltam as palavras.
Amor?
Não, talvez não, acredito que nunca tenha sido, embora eu o tenha sentido tão próximo, agora me ocorre que talvez eu nunca tenha amado.
Tantas formas diferentes de sentir, e a necessidade de catalogá-las, rotulá-las, e guardá-las num lugar seguro, tudo impressão... Não pode um sentimento ser tantos, deve haver algum que a gente reconheça com toda nossa capacidade sensitiva.
“O teu amor é uma mentira que a minha vaidade quer, e o meu poesia de cego você não pode ver.” E a ilusão vai se dissipando lentamente nesse estranho gosto de que a brincadeira acabou.
O amor é bom?
Alguns dizem que sim, já ouvi dizer que “é feio, tem cara de lixo”, e eu continuo sem opinião formada, não sei sequer o que sinto, não possuo certezas. Às vezes, noto uma vaga beleza, sinto raiva muito bem definida, inveja, medo, tristeza, sentimentos nem tão definidos assim, tenho tantas dúvidas e gostaria de ficar com a bela imagem de que o amor é bom.
“O nosso amor a gente inventa pra se distrair”, por isso talvez eu nunca tenha amado, ou tenha, afinal quando acaba a gente pensa que ele nunca existiu. Portanto, hoje eu fico com a definição que me convém... Amor: substantivo simples, comum e abstrato.

Inspirado na música de Cazuza. 

sexta-feira, 11 de março de 2011

O velho e o moço

Aquele velho sempre tão tranquilo naquela cadeira confortável, reclinável, e de um couro muito macio, estava lá, de frente pra vidraça que se anulava em verde, lá fora, no jardim, diante de seus olhos, murchos atrás de outros vidros. Era domingo. Dia de ressaca. Um domingo chuvoso de verão. Leonardo, de banho tomado, invejava o velho sentado. Ele que curtia aquela dor de cabeça, aquele estômago embrulhado, de álcool vomitado, ainda de roupão, esperava pelo sermão. Não viria de seu Leopoldo. Dele, o avô, não. Dele, não. Parecia viver num mundo à parte, junto da avó, que por aquelas dez da manhã, devia estar ainda na cama, tão bem de saúde. Dela também, ele esperava nada. Devia partir da mãe, da tia Judith, ou ainda de seu pai, sempre tão distante, mas que ressurgia naquelas ocasiões, a berrar ao telefone. Afinal, a pensão ainda era paga. Os irmãos, estes falariam um bocado, como ele, sempre tão mimados, exigiriam alguma satisfação da mãe, algum exemplo se punição. Leonardo não se dava muito com eles. Jéssica de dezesseis, Ronaldo, de dezoito, ele, já com seus vinte e um.  A dor de cabeça causada pela vodca, aumentava só de pensar em quando e quem começaria a fazer um balanço geral de sua vida até ali, de seus sempre tão repetitivos erros, mancadas, e do que pretendia fazer dali pra frente pra que mudasse seu certo destino de fracasso, sem nada nem ninguém. O domingo era dia propício a este risco. Era o dia seguinte à sexta e ao sábado, sempre tão embalados, que cobravam o preço no domingo, o dia depressivo da semana. Era esperar a comoção da tia, os insultos dos irmãos, a fala repetida da mãe e a arrogância do pai. No entanto, este domingo em especial, reservava um ingrediente a mais. Envolvia um certo carro, cujo seguro já havia sido contatado.
Seu Leopoldo, ouvindo ópera na cadeira, ópera de CD, muito bem agasalhado, muito bem reconfortado, exibia uma cara de constante gozo, enquanto folheava o jornal, deixado há pouco, por Tereza, a empregada, ao seu alcance. Leonardo ainda esperava, mas ninguém parecia estar em casa. O telefone não tocava. Ele recusara ainda há pouco um sanduíche que Tereza tinha lhe oferecido. Bebia nada além de água muito gelada, pra parar com aquela sede desmedida. Estava pálido, com olheiras pesadas, de roupão e nada disposto, os cabelos ainda molhados. Ninguém parecia estar em casa.
Agora, seu Leopoldo beliscava uns chocolates deixados por Tereza, ao seu alcance. Eram chocolates brancos e escuros, pareciam ser bombons. O neto, encolhido num sofá distante, às costas do avô, mantinha os olhos sobre ele. A boca com que o velho comia aqueles chocolates, despertara até mesmo nele, a vontade. Comia como não se come, degustava, apreciava a textura e o sabor de cada um, engolia-os aos poucos. Quando atentou pra este detalhe, o chocolate derretendo no calor molhado da boca do velho, o rapaz teve um indício de náusea. Por fim, passou tanto tempo e Leonardo acabou por acompanhar o avô devorar a vasilha toda. Quanto tempo havia passado desde então, quando ele passara a prestar atenção naquilo e se perdera em divagação? Nenhuma movimentação na casa. Realmente não estavam lá. Onde haveriam de estar? Era inevitável que ele se perguntasse, mas já não havia saco pra pensar. A chuva escorria pelas vidraças. E mesmo o céu, muito nublado, cinza, carregado, parecia ofuscar o verde do jardim. Jardim este, tão bem tratado, como seu Leopoldo e dona Guilhermina primaram desde sempre. Que houvesse a beleza. Eram dois virtuosos aposentados que não abriam mão de seus bons hábitos. Velhos poucos estes. E aquela ópera de CD persistia. Ninguém chegava, ninguém telefonava. Devia ser meio-dia.
A avó apenas lhe acenou de cara fechada, enquanto sentada à mesa, na sala de jantar, esperava pelo velho, pra que o almoço fosse servido. O avô com uma fisionomia simpática, convidou o jovem pra que se juntasse a eles, mas Leonardo apenas agradeceu. Seu Leopoldo ainda tinha apetite pra almoçar, mesmo depois de tantos bombons? O velho parecia não se ver muito cômodo com o auxílio de Juliana, a enfermeira, pra que se locomovesse até lá. Talvez se tratasse apenas do orgulho masculino, que mesmo nos mais idosos parecia persistir. Mas o velho sabia do incômodo e ela tinha razão quando vinha lhe dizer que era preciso, sim, de todo o cuidado. Quando se lembrava da preocupação de sua mulher, sua companheira de tão longa data, ele engolia sua vaidade e cumpria à risca todas as determinações, nem todas elas francamente, mas disfarçava muito bem, inclusive ser escorado por uma mulher pra andar. Não era nenhum jovem, já passara dos oitenta. Do lugar onde Leonardo estava, à lateral esquerda sua, tinha-se uma visão parcial da mesa, que permitia a ele acompanhar os dois velhos comendo. E ele quase sorriu quando antes de se sentar, o avô se dirigira à avó e lhe dera um beijo na boca, juntamente a um cordial e até galante bom-dia. E com que bocas saboreavam aquela refeição seguida de sobremesa e regada a vinho. Eram velhos privilegiados, talvez apenas dois desesperados à beira do fim, ou ainda apenas ele por ela, ela por ele, dois sábios, afinal. Não havia saco pra pensar naqueles dois velhos bons vivants, patéticos, decadentes, ricos à beira do comum fim de todos.
E já passara das catorze horas quando os velhos foram acompanhados aos seus quartos pra tirar uma pestana. Permaneceriam lá até dezessete horas e de banhos tomados iriam pra sala jogar caxeta e beber mais vinho. Leonardo permaneceria lá, naquele mesmo sofá, remoendo seu passado, em busca de algumas explicações. Odiava, claro, vaidoso, a idéia de que se auto-analisar fosse um exercício de autopiedade, subterfúgio de fracos. Ele curtia aquilo mesmo. Toda aquela droga, todo aquele sexo e todo aquele bom rock’n’roll. Um foda-se bem grande pra tudo. Ele gostava mesmo era do estrago, desde pequeno, como os carrinhos de brinquedo quebrados, logo na noite de natal. Até onde pudesse, levaria a vida naquele embalo, sem previsões do que pudesse vir a dar a errado, sem desistir daquilo que estava óbvio: daria errado. Porque ele ainda podia. Não queria saber de nada que exigisse muito compromisso. Ele queria abusar da liberdade que lhe era dada, somente isto. Era jovem e por isso ainda poderia reincidir várias e várias vezes. Era mesmo muito jovem. E a busca por respostas que indicassem alguma pista da razão de tanto desencontro e infortúnio era barrada pelo muro de tédio, e rebeldia sem causa, e pura inconseqüência juvenil, de um jovem burguesinho e suas loucas peripécias. Dava dó. Era preciso fugir de espelho pra que não sentisse mesmo a temida autopiedade. Crescer podia ser doloroso. Era um irresponsável irremediável e ponto. E abandonar tudo o que já provara pra tantos, em atos desvairados, heróicos, destemidos, corajosos, que lhe renderam a premissa de não saber a medida do tempo e do medo? Ele ainda estava só de roupão, bebendo seus goles frequentes de água, encolhido no sofá, observando os avôs de longe sem saco nenhum pra pensar.
Quando passava das dezenove horas, Leonardo chamou Tereza, que logo estava a seu dispor, solícita. Perguntou onde estavam todos. E como não pensou nisso antes? Porque não importava realmente, até aquelas horas. E Tereza também não lhe falaria de graça. Evitava-o temendo por alguma resposta atravessada, ou pela total indiferença. Ele bem sabia que ela não ia com sua cara desde criança, lembrava bem quando lhe chamava de tinhoso, de teimoso e desaforado. E ele também não ia com a dela. Como todos naquela casa, conquistara esta invisibilidade por parte dela, apesar de suspeitar de que ela o denunciasse, às vezes, à mãe. Talvez fosse quase forçada a ter que responder a que horas tinha ele chegado, com quem, e quantos se trancaram no seu quarto, na noite passada, e a que horas foram embora.  De qualquer maneira, até mesmo pra evitar algum eventual atrito com o patrãozinho, ela atendia quando ele a chamava, e respondia a ele quando era perguntada. Leonardo tão bem sabia que todos já deveriam estar sabendo, só ele não lembrava bem. Por isso não perguntou antes, por isso já eram sete da noite, porque ele sabia bem a resposta. Na sexta, antes que saísse, eles falaram mesmo que iriam pra Angra. Deviam continuar por lá.  Chegou a cogitar de que ninguém soubesse ainda. Depois procurou por algum B.O. sobre o criado-mudo, misturado a outros papéis estranhos, papéis oficiais e não encontrou nem algo parecido. E a carteira de motorista continuava lá. Certo mesmo, ainda que demasiadamente embriagado, era o fashe, aquele vislumbre impreciso, de que socara o carro num poste. Disso ele tinha quase certeza. Mas o que aconteceu depois, ele nem ousava adivinhar.
- A que horas eu cheguei? Com quem?
Tereza imaginara o dia todo que ele acabaria perguntando isto a ela, mais cedo ou mais tarde. Afinal, ele chegou em casa, às cinco da manhã, carregado pelo pai, apagado de cachaça. Ela respondeu-lhe o que tinha presenciado e disse ainda não saber direito o que tinha acontecido, mas que ele tinha batido o carro mesmo, e ligado pro pai, àquelas horas da madrugada, pra que ele fosse acudi-lo. Tereza lhe disse ainda que a mãe havia ligado, e disse que era pra ele não sair, ela chegaria antes das vinte e duas. Teve até mesmo a audácia de dizer que não tinha lhe passado o recado porque sabia que de nada adiantaria pedir que ele esperasse pela mãe. Dito e feito. A chuva já havia passado.
Pegou as chaves do carro do irmão, trocou-se num instante, escovou os dentes, e saiu sem dizer aonde iria. Ninguém perguntou quando ele passou pela sala e se dirigiu a garagem. Ele, como de hábito, não falou nada a ninguém. Mas antes que a portão da rua subisse por completo, durante aqueles segundos de espera, perdeu-se. Mirou a sala na transparência da vidraça, ainda respingada. Os dois velhos já estavam na terceira garrafa daquele vinho tinto, e abrindo seus dentes de dentadura em contínuas risadas desvairadas, ele percebia. Pareciam se divertir tanto. A enfermeira e Tereza estavam sentadas à mesa dos velhos agora. E o avô distribuía as cartas com entusiasmo e tremedeira. Leonardo permaneceu assim, no carro, imerso naquela cena, fora de si. O portão aberto, ele sentado ao volante, assistindo aqueles velhos e aquelas duas, sem sair do lugar. Passou por ele um estranho sentimento. Ele, que desde manhã, acompanhara cada passo do dia tedioso de seu avô, invejava amargamente a satisfação que aquele velho exibia na cara. Mas tal monotonia não lhe bastaria, com toda a certeza.  Não teria a paciência necessária. Talvez não tivesse ainda. Seu Leopoldo pra ele, e ele nem mesmo pensara nisto antes daquele momento, era mero figurante gagá, que não dizia coisa com coisa, que só dizia o que convinha, e parecia só ouvir o mesmo. Parecia já estar meio caduco, meio lelé, e até mesmo um pouco abatido. Devia ter lá seus probleminhas de saúde, mas talvez subornasse a enfermeira pra encherem a cara de vinho daquele jeito. Era sempre assim quando as filhas saiam. Mas não devia ser isto, não. Bebiam quando elas estavam lá. Não devia ter nenhum probleminha muito grave. Nem ele nem a avó. E nem Tereza, aquela abusada.
Como ele invejou o avô, por um momento. Amanhã os dois velhos deveriam sair pra caminhar, como dois cachorros acompanhados pela enfermeira, na orla da praia. Deveriam ainda comparecer à casa de alguns parentes. Tinham este hábito. Deveriam ir ao bingo semanal na quarta-feira e tantas outras coisas de idosos ativos e desocupados. Ele invejou a mediocridade de seu avô e seu contentamento com a simplicidade. Foi apenas por um instante. A seguir, ainda estagnado, sem ligar o motor, ele fez uma reconstituição o mais possível lógica do que teria acontecido. Devia ter batido o carro, bêbado, e chamado o pai pra livrá-lo daquele enrosco. E o pai devia ter feito isto mesmo, porque Leonardo estava ali, são e salvo e ainda com a carteira de motorista. Devia o homem ter ligado à mãe e contado tudo e soltado os cachorros nela, por não lhe manter nos trilhos. Ela devia estar furiosa, ansiando por chegar em casa, Tia Judith enchendo sua cabeça, os irmãos contando a todos os conhecidos, no suspense do encontro. Mas ele não ficaria esperando por eles, não. Ia sair por aí. Chegaria quando eles estivessem dormindo. Amanhã era segunda, quase todos tinham algo pra fazer pela manhã.
Finalmente ligou o carro e desceu devagar até ganhar a rua. Ele estava novo em folha pra seguir em frente e ignorar aquela noite ruim. Estava ciente de que teria que ouvir um bocado, já estava conformado, sabia como agir até que todos esquecessem, mas evitaria ao máximo o desgaste. Ele não sabia mesmo ouvir, nem quando convinha. E aquela inveja passageira do velho, dissipou-se rápido, até o veículo ganhar velocidade, e a mente ocupar-se com distração.

Inspirado na música de Rodrigo Amarante.