sexta-feira, 11 de março de 2011

O velho e o moço

Aquele velho sempre tão tranquilo naquela cadeira confortável, reclinável, e de um couro muito macio, estava lá, de frente pra vidraça que se anulava em verde, lá fora, no jardim, diante de seus olhos, murchos atrás de outros vidros. Era domingo. Dia de ressaca. Um domingo chuvoso de verão. Leonardo, de banho tomado, invejava o velho sentado. Ele que curtia aquela dor de cabeça, aquele estômago embrulhado, de álcool vomitado, ainda de roupão, esperava pelo sermão. Não viria de seu Leopoldo. Dele, o avô, não. Dele, não. Parecia viver num mundo à parte, junto da avó, que por aquelas dez da manhã, devia estar ainda na cama, tão bem de saúde. Dela também, ele esperava nada. Devia partir da mãe, da tia Judith, ou ainda de seu pai, sempre tão distante, mas que ressurgia naquelas ocasiões, a berrar ao telefone. Afinal, a pensão ainda era paga. Os irmãos, estes falariam um bocado, como ele, sempre tão mimados, exigiriam alguma satisfação da mãe, algum exemplo se punição. Leonardo não se dava muito com eles. Jéssica de dezesseis, Ronaldo, de dezoito, ele, já com seus vinte e um.  A dor de cabeça causada pela vodca, aumentava só de pensar em quando e quem começaria a fazer um balanço geral de sua vida até ali, de seus sempre tão repetitivos erros, mancadas, e do que pretendia fazer dali pra frente pra que mudasse seu certo destino de fracasso, sem nada nem ninguém. O domingo era dia propício a este risco. Era o dia seguinte à sexta e ao sábado, sempre tão embalados, que cobravam o preço no domingo, o dia depressivo da semana. Era esperar a comoção da tia, os insultos dos irmãos, a fala repetida da mãe e a arrogância do pai. No entanto, este domingo em especial, reservava um ingrediente a mais. Envolvia um certo carro, cujo seguro já havia sido contatado.
Seu Leopoldo, ouvindo ópera na cadeira, ópera de CD, muito bem agasalhado, muito bem reconfortado, exibia uma cara de constante gozo, enquanto folheava o jornal, deixado há pouco, por Tereza, a empregada, ao seu alcance. Leonardo ainda esperava, mas ninguém parecia estar em casa. O telefone não tocava. Ele recusara ainda há pouco um sanduíche que Tereza tinha lhe oferecido. Bebia nada além de água muito gelada, pra parar com aquela sede desmedida. Estava pálido, com olheiras pesadas, de roupão e nada disposto, os cabelos ainda molhados. Ninguém parecia estar em casa.
Agora, seu Leopoldo beliscava uns chocolates deixados por Tereza, ao seu alcance. Eram chocolates brancos e escuros, pareciam ser bombons. O neto, encolhido num sofá distante, às costas do avô, mantinha os olhos sobre ele. A boca com que o velho comia aqueles chocolates, despertara até mesmo nele, a vontade. Comia como não se come, degustava, apreciava a textura e o sabor de cada um, engolia-os aos poucos. Quando atentou pra este detalhe, o chocolate derretendo no calor molhado da boca do velho, o rapaz teve um indício de náusea. Por fim, passou tanto tempo e Leonardo acabou por acompanhar o avô devorar a vasilha toda. Quanto tempo havia passado desde então, quando ele passara a prestar atenção naquilo e se perdera em divagação? Nenhuma movimentação na casa. Realmente não estavam lá. Onde haveriam de estar? Era inevitável que ele se perguntasse, mas já não havia saco pra pensar. A chuva escorria pelas vidraças. E mesmo o céu, muito nublado, cinza, carregado, parecia ofuscar o verde do jardim. Jardim este, tão bem tratado, como seu Leopoldo e dona Guilhermina primaram desde sempre. Que houvesse a beleza. Eram dois virtuosos aposentados que não abriam mão de seus bons hábitos. Velhos poucos estes. E aquela ópera de CD persistia. Ninguém chegava, ninguém telefonava. Devia ser meio-dia.
A avó apenas lhe acenou de cara fechada, enquanto sentada à mesa, na sala de jantar, esperava pelo velho, pra que o almoço fosse servido. O avô com uma fisionomia simpática, convidou o jovem pra que se juntasse a eles, mas Leonardo apenas agradeceu. Seu Leopoldo ainda tinha apetite pra almoçar, mesmo depois de tantos bombons? O velho parecia não se ver muito cômodo com o auxílio de Juliana, a enfermeira, pra que se locomovesse até lá. Talvez se tratasse apenas do orgulho masculino, que mesmo nos mais idosos parecia persistir. Mas o velho sabia do incômodo e ela tinha razão quando vinha lhe dizer que era preciso, sim, de todo o cuidado. Quando se lembrava da preocupação de sua mulher, sua companheira de tão longa data, ele engolia sua vaidade e cumpria à risca todas as determinações, nem todas elas francamente, mas disfarçava muito bem, inclusive ser escorado por uma mulher pra andar. Não era nenhum jovem, já passara dos oitenta. Do lugar onde Leonardo estava, à lateral esquerda sua, tinha-se uma visão parcial da mesa, que permitia a ele acompanhar os dois velhos comendo. E ele quase sorriu quando antes de se sentar, o avô se dirigira à avó e lhe dera um beijo na boca, juntamente a um cordial e até galante bom-dia. E com que bocas saboreavam aquela refeição seguida de sobremesa e regada a vinho. Eram velhos privilegiados, talvez apenas dois desesperados à beira do fim, ou ainda apenas ele por ela, ela por ele, dois sábios, afinal. Não havia saco pra pensar naqueles dois velhos bons vivants, patéticos, decadentes, ricos à beira do comum fim de todos.
E já passara das catorze horas quando os velhos foram acompanhados aos seus quartos pra tirar uma pestana. Permaneceriam lá até dezessete horas e de banhos tomados iriam pra sala jogar caxeta e beber mais vinho. Leonardo permaneceria lá, naquele mesmo sofá, remoendo seu passado, em busca de algumas explicações. Odiava, claro, vaidoso, a idéia de que se auto-analisar fosse um exercício de autopiedade, subterfúgio de fracos. Ele curtia aquilo mesmo. Toda aquela droga, todo aquele sexo e todo aquele bom rock’n’roll. Um foda-se bem grande pra tudo. Ele gostava mesmo era do estrago, desde pequeno, como os carrinhos de brinquedo quebrados, logo na noite de natal. Até onde pudesse, levaria a vida naquele embalo, sem previsões do que pudesse vir a dar a errado, sem desistir daquilo que estava óbvio: daria errado. Porque ele ainda podia. Não queria saber de nada que exigisse muito compromisso. Ele queria abusar da liberdade que lhe era dada, somente isto. Era jovem e por isso ainda poderia reincidir várias e várias vezes. Era mesmo muito jovem. E a busca por respostas que indicassem alguma pista da razão de tanto desencontro e infortúnio era barrada pelo muro de tédio, e rebeldia sem causa, e pura inconseqüência juvenil, de um jovem burguesinho e suas loucas peripécias. Dava dó. Era preciso fugir de espelho pra que não sentisse mesmo a temida autopiedade. Crescer podia ser doloroso. Era um irresponsável irremediável e ponto. E abandonar tudo o que já provara pra tantos, em atos desvairados, heróicos, destemidos, corajosos, que lhe renderam a premissa de não saber a medida do tempo e do medo? Ele ainda estava só de roupão, bebendo seus goles frequentes de água, encolhido no sofá, observando os avôs de longe sem saco nenhum pra pensar.
Quando passava das dezenove horas, Leonardo chamou Tereza, que logo estava a seu dispor, solícita. Perguntou onde estavam todos. E como não pensou nisso antes? Porque não importava realmente, até aquelas horas. E Tereza também não lhe falaria de graça. Evitava-o temendo por alguma resposta atravessada, ou pela total indiferença. Ele bem sabia que ela não ia com sua cara desde criança, lembrava bem quando lhe chamava de tinhoso, de teimoso e desaforado. E ele também não ia com a dela. Como todos naquela casa, conquistara esta invisibilidade por parte dela, apesar de suspeitar de que ela o denunciasse, às vezes, à mãe. Talvez fosse quase forçada a ter que responder a que horas tinha ele chegado, com quem, e quantos se trancaram no seu quarto, na noite passada, e a que horas foram embora.  De qualquer maneira, até mesmo pra evitar algum eventual atrito com o patrãozinho, ela atendia quando ele a chamava, e respondia a ele quando era perguntada. Leonardo tão bem sabia que todos já deveriam estar sabendo, só ele não lembrava bem. Por isso não perguntou antes, por isso já eram sete da noite, porque ele sabia bem a resposta. Na sexta, antes que saísse, eles falaram mesmo que iriam pra Angra. Deviam continuar por lá.  Chegou a cogitar de que ninguém soubesse ainda. Depois procurou por algum B.O. sobre o criado-mudo, misturado a outros papéis estranhos, papéis oficiais e não encontrou nem algo parecido. E a carteira de motorista continuava lá. Certo mesmo, ainda que demasiadamente embriagado, era o fashe, aquele vislumbre impreciso, de que socara o carro num poste. Disso ele tinha quase certeza. Mas o que aconteceu depois, ele nem ousava adivinhar.
- A que horas eu cheguei? Com quem?
Tereza imaginara o dia todo que ele acabaria perguntando isto a ela, mais cedo ou mais tarde. Afinal, ele chegou em casa, às cinco da manhã, carregado pelo pai, apagado de cachaça. Ela respondeu-lhe o que tinha presenciado e disse ainda não saber direito o que tinha acontecido, mas que ele tinha batido o carro mesmo, e ligado pro pai, àquelas horas da madrugada, pra que ele fosse acudi-lo. Tereza lhe disse ainda que a mãe havia ligado, e disse que era pra ele não sair, ela chegaria antes das vinte e duas. Teve até mesmo a audácia de dizer que não tinha lhe passado o recado porque sabia que de nada adiantaria pedir que ele esperasse pela mãe. Dito e feito. A chuva já havia passado.
Pegou as chaves do carro do irmão, trocou-se num instante, escovou os dentes, e saiu sem dizer aonde iria. Ninguém perguntou quando ele passou pela sala e se dirigiu a garagem. Ele, como de hábito, não falou nada a ninguém. Mas antes que a portão da rua subisse por completo, durante aqueles segundos de espera, perdeu-se. Mirou a sala na transparência da vidraça, ainda respingada. Os dois velhos já estavam na terceira garrafa daquele vinho tinto, e abrindo seus dentes de dentadura em contínuas risadas desvairadas, ele percebia. Pareciam se divertir tanto. A enfermeira e Tereza estavam sentadas à mesa dos velhos agora. E o avô distribuía as cartas com entusiasmo e tremedeira. Leonardo permaneceu assim, no carro, imerso naquela cena, fora de si. O portão aberto, ele sentado ao volante, assistindo aqueles velhos e aquelas duas, sem sair do lugar. Passou por ele um estranho sentimento. Ele, que desde manhã, acompanhara cada passo do dia tedioso de seu avô, invejava amargamente a satisfação que aquele velho exibia na cara. Mas tal monotonia não lhe bastaria, com toda a certeza.  Não teria a paciência necessária. Talvez não tivesse ainda. Seu Leopoldo pra ele, e ele nem mesmo pensara nisto antes daquele momento, era mero figurante gagá, que não dizia coisa com coisa, que só dizia o que convinha, e parecia só ouvir o mesmo. Parecia já estar meio caduco, meio lelé, e até mesmo um pouco abatido. Devia ter lá seus probleminhas de saúde, mas talvez subornasse a enfermeira pra encherem a cara de vinho daquele jeito. Era sempre assim quando as filhas saiam. Mas não devia ser isto, não. Bebiam quando elas estavam lá. Não devia ter nenhum probleminha muito grave. Nem ele nem a avó. E nem Tereza, aquela abusada.
Como ele invejou o avô, por um momento. Amanhã os dois velhos deveriam sair pra caminhar, como dois cachorros acompanhados pela enfermeira, na orla da praia. Deveriam ainda comparecer à casa de alguns parentes. Tinham este hábito. Deveriam ir ao bingo semanal na quarta-feira e tantas outras coisas de idosos ativos e desocupados. Ele invejou a mediocridade de seu avô e seu contentamento com a simplicidade. Foi apenas por um instante. A seguir, ainda estagnado, sem ligar o motor, ele fez uma reconstituição o mais possível lógica do que teria acontecido. Devia ter batido o carro, bêbado, e chamado o pai pra livrá-lo daquele enrosco. E o pai devia ter feito isto mesmo, porque Leonardo estava ali, são e salvo e ainda com a carteira de motorista. Devia o homem ter ligado à mãe e contado tudo e soltado os cachorros nela, por não lhe manter nos trilhos. Ela devia estar furiosa, ansiando por chegar em casa, Tia Judith enchendo sua cabeça, os irmãos contando a todos os conhecidos, no suspense do encontro. Mas ele não ficaria esperando por eles, não. Ia sair por aí. Chegaria quando eles estivessem dormindo. Amanhã era segunda, quase todos tinham algo pra fazer pela manhã.
Finalmente ligou o carro e desceu devagar até ganhar a rua. Ele estava novo em folha pra seguir em frente e ignorar aquela noite ruim. Estava ciente de que teria que ouvir um bocado, já estava conformado, sabia como agir até que todos esquecessem, mas evitaria ao máximo o desgaste. Ele não sabia mesmo ouvir, nem quando convinha. E aquela inveja passageira do velho, dissipou-se rápido, até o veículo ganhar velocidade, e a mente ocupar-se com distração.

Inspirado na música de Rodrigo Amarante.

Um comentário:

  1. O seu texto me faz refletir também, sobre o tempo. Juventude, velhice... Qual a melhor época? Quem está certo? Há uma maneira correta de se viver a vida? Ou o certo é somente se deixar levar, experimentar... Amo o jeito que você vê o mundo...

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